Porque liberdade de expressão é fundamental¹
Steven Pinker 2 3
Mais de dois séculos após a
liberdade de expressão ter sido consagrada na Primeira Emenda da Constituição4,
esse direito está constantemente nas notícias. Códigos de discurso de
universidades, desconvite de palestrantes de formatura, prisão de artistas
performáticos, exílio de leakers5, um blogueiro condenado a centenas
de chibatadas por um de nossos mais próximos aliados e o massacre de
cartunistas franceses forçaram o mundo democrático a examinar as raízes de seu
compromisso com a liberdade de expressão.
Será a liberdade de expressão
meramente um talismã simbólico, como uma bandeira nacional ou um lema? É somente
um de muitos valores que usamos uns contra os outros? O Papa Francisco estava
certo quando disse que “você não pode fazer piada da fé de outros”?
Universidades podem amordaçar alguns estudantes para proteger à sensibilidade
de outros? Os cartunistas do Cherlie Hebdo “cruzaram a linha que separa a
liberdade de expressão do discurso tóxico6”, como o reitor de uma
faculdade de jornalismo recentemente opinou? Ou liberdade de expressão é
fundamental – um direito o qual é, se não absoluto, deveria ser desconsiderado
somente em casos cuidadosamente circunstritos?
A resposta é que a liberdade de
expressão é de fato fundamental. É importante lembrarmo-nos porque, e ter as
razões na ponta da língua quando esse direito for questionado.
A primeira razão é que muita
coisa que o que realmente estamos fazendo quando questionamos alguém sobre
liberdade de expressão é fundamental – expressando e valorando ideias –
pressupõe que temos o direito de expor e valorar ideias. Em um discurso sobre
liberdade de expressão (ou qualquer outro assunto), estamos expressando. Não estamos estabelecendo
nossa discordância com uma queda-de-braço ou um belo duelo de pistolas. A menos
que você esteja disposto a desacreditar a si mesmo declarando, nas palavras de
Nat Hentoff, “liberdade de expressão para mim, mas não para ti”, tão logo você traga
a debate seu argumento contra a liberdade de expressão, você perdeu o debate.
Àqueles que não se importam com
este argumento lógico pode-se convence-los com base na experiência humana. Pode-se
imaginar um mundo no qual oráculos, adivinhos, profetas, papas, visionários,
imans ou gurus apresentem-nos a verdade que somente eles possuem, e o resto de
nós teria que ser insensato, de fato criminoso, para questionar. A história nos
mostra que esse não é o mundo em que vivemos. Auto-proclamados detentores da
verdade repetidamente têm se mostrado errados – frequentemente de forma cômica –
pela história, ciência e senso comum.
Talvez a grande descoberta na
história da humanidade – a precede outras descobertas – é a de que nossas tradicionais
fontes tradicionais de crença são, de fato, geradoras de erros e deveriam ser
desconsideradas como fundamento para conhecimento. Isso inclui a fé, a
revelação, o dogma, a autoridade, carisma, augúrio, profecia, intuição,
clarividência, sabedoria popular e certeza subjetiva.
Como, então, podemos saber? Para
além de provar teoremas matemáticos, os quais não tratam do mundo real, a resposta
é o processo que o filósofo Karl Popper chamou de conjectura e refutação. Começamos
com ideias sobre a natureza da realidade e testamo-las diante da realidade,
permitindo ao mundo falsear nossos erros. A parte da “conjectura” desta
fórmula, é claro, depende do exercício de liberdade de expressão. Apresentamos essas
conjecturas sem qualquer certeza prévia de que estão certas. São apenas ideias expressas
e ver quais resistem às tentativas de refutação adquirimos o conhecimento.
Uma vez que essa realização surgiu
durante a revolução científica e o iluminismo, o conhecimento tradicional do
mundo foi transformado. Todos sabem que a descoberta de que a terra gira em
torno do sol e não o contrário teve que superar a resistência da autoridade
clerical. Mas a revolução copernicana foi somente o primeiro evento em um cataclismo
que faria nosso atual conhecimento do mundo irreconhecível por nossos
ancestrais. Tudo que sabemos do mundo – a idade de nossa civilização, espécies,
planeta e universo; a matéria de que somos feitos; as leis que governam matéria
e energia; o funcionamento do corpo e cérebro – chegaram como insultos ao dogma
sagrado do dia. Sabemos agora que as convicções amadas de qualquer tempo e
cultura talvez seja decisivamente falseada, incluindo algumas que temos hoje.
Uma terceira razão pela qual a
liberdade de expressão é fundacional para
o florescimento humano é esta é essencial para a democracia, e um baluarte
contra a tirania. Como os monstruosos regimes do século XX conquistaram e
mantiveram o poder? A resposta é que esses grupos de fanáticos armados
silenciaram seus críticos e adversários. (A eleição de 1933 que deu aos
Nazistas uma pluralidade foi precedida por anos de intimidação, morte e caos
violento). E uma vez no poder, os totalitários criminalizam qualquer crítica a
seus regimes. Isso também é verdade nos menos genocidas mas igualmente brutais
regimes de nossos dias, como os da China, Russia, estados africanos ditatoriais
e muito do mundo islâmico7.
Por que ditadores não têm
opositores? Pode-se imaginar autocratas que forram seus ninhos e prendem ou
matam somente àqueles que diretamente tentam usurpar seus privilégios, enquanto
permitem seus impotentes submetidos a contemplar tudo o que fazem. Há uma boa
razão por que ditadores não o fazem. Os submetidos a um regime tirânico não são
iludidos de que são felizes, e se dezenas de milhões de cidadãos descontentes
agirem juntos, nenhum regime tem a força bruta para resisti-los. A razão pela
qual os cidadãos não resistem a seus senhores em massa é que eles perdem o conhecimento
comum – a consciência de que todos compartilham seus conhecimentos e sabem que
compartilham. As pessoas vão expor-se a riscos de represálias por um regime
despótico somente se elas souberem que outros estão expondo a si mesmos ao
risco ao mesmo tempo.
O conhecimento comum é criado
pela informação pública, tal como uma declaração transmitida. A história da “roupa
nova do imperador” ilustra essa lógica. Quando um pequeno garoto gritou que o
imperador estava nu, ele não estava dizendo nada que eles não soubessem com
antecedência, que não pudessem ver com seus próprios olhos. Mas ele mudou seu
conhecimento, não obstante, porque agora todo mundo soube que todo mundo sabia
que o imperador estava nu. E o conhecimento comum encorajou-os a desafiar à
autoridade do imperador com seus risos.
A história nos relembra por que
humor não é motivo para rir – porque sátira e o ridículo, mesmo quando pueril e
insípido, aterroriza aos autocratas e é protegido pelas democracias. A sátira
pode furtivamente desafiar as assumpções que são a segunda natureza de uma
audiência, forçando-as a ver que suas assumpções trazem consequências que
qualquer um reconhece como absurdas.
Por isso é que o humor tão
frequentemente serve como um acelerante do progresso social. No século XVII
caras espertos como Voltaire, Swift e Johnson ridicularizaram às guerras,
opressões e práticas cruéis de seus dias. Nos anos 1960 comediantes e artistas
mostraram racistas como broncos neandertais e as guerras do Vietnã e Fria como
psicopatias imorais. A União Soviética e seus estados-satélite tinham uma rica
corrente subterrânea de sátira, como na definição comum das duas ideologias da
Guerra Fria: “Capitalismo é a exploração do homem pelo
homem; Comunismo é seu exato
oposto”.
Usamos discursos com farpas para
minar não somente ditadores políticos, mas os opressores mesquinhos do dia a
dia: o chefe tirânico, o pregador santarrão, o valentão do bar, o vizinho de
normas sufocantes.
É verdade que a liberdade de
expressão tem limites. Eliminamos exceções de fraude, difamação, extorsão,
divulgação de segredos militares e incitamento a ações ilegais. Mas essa exceções
devem ser estritamente delineadas e individualmente justificadas; não uma
desculpa para tratar a fala como um bem descartável entre muitos outros. Déspotas
em autoproclamadas “repúblicas democráticas” rotineiramente prendem seus
opositores sob acusação de traição, difamação e incitamento à ilegalidade. As
leis de difamação da Grã-Bretanha têm sido usadas para silenciar críticas às
figuras públicas, oligarcas, negadores do holocausto e médicos charlatões. Mesmo
a famosa exceção de Oliver Wendell Holemes à liberdade de expressão –
falsamente gritar “Fogo!” em um teatro lotado – é facilmente abusada, não menos
pelo próprio Holmes. Ele cunhou o meme em um caso da Suprema Corte de 1919 o
qual sustentava a condenação de um homem que estava distribuindo panfletos
encorajando homens a resistir à convocação durante a I Guerra Mundial, uma
clara expressão de opinião em uma democracia.
E se você discorda destes
argumentos – se você quer expor uma falha em minha lógica um lapso em minha
acurácia – é a liberdade de expressão que vai lhe permitir faze-lo.
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1 Publicado em 27/01/2015, no Boston Globe (artigo original
em https://www.bostonglobe.com/opinion/2015/01/26/why-free-speech-fundamental/aaAWVYFscrhFCC4ye9FVjN/story.html).
2 Psicólogo e linguista canadense naturalizado estadunidense;
atualmente leciona na Universidade Harvard e escreve livros de divulgação
científica, dentre os quais se destacam A Tábula Rasa e The Sense of Style.
3 Traduzido por Guto Riella.
4 Constituição dos Estados Unidos da América (http://corvobranco.tripod.com/dwnl/constEUA.pdf)
5 Leaker: nesse contexto vazador de informações,
referindo-se ao caso Julian Assange, do WikiLeaks
6 Nosso equivalente a “discurso de ódio”
7 Também se aplica a Cuba e à nossa própria ditadura militar
(1964-1985) (NT)
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