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Vivendo de cultura

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Eu estava no terceiro whisky quando ele chegou. “Cara, quanto tempo! E os bacurizinhos como vão?” Sempre ri intimamente de seu jeito acariocado de falar, afinal, ele o adquiriu nos poucos meses em que serviu em um quartel no Rio... Apesar de, naquele momento, estar disposto a ficar só com minhas conexões neurais, não pude me furtar a ser gentil: “Aguirre, há quanto tempo! Como vai o Fernando Pessoa de Uruguaiana?” “Que é isso, cara”, diz ele, tentando fingir modéstia, “é bondade sua...” “Senta aí e vamos tomar um ‘goró’. “Tá, mas é só um, tenho que seguir trabalhando...” “E o que tem feito da vida?” Para que fui perguntar? Seus olhos brilharam e marejaram: “Tenho tentado viver de cultura nesta cidade ingrata e inculta.” “Viver de cultura? E como é isso? Vai dizer que tá sendo sustentado por uma professora?” “Antes fosse”, responde ele, limpando o suor da careca precoce, enquanto tenho uma vontade quase incontrolável de rir de seus olhos esbugalhados atrás dos grandes óculos, “antes fos...

Contos do Universo Paralelo

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Não falha nunca. Cada vez que, nos últimos anos, fui apresentado a uma pessoa e relatei-lhe minha profissão ela invariavelmente dispara uma das três perguntas básicas, todas elas versões de um mesmo questionamento: Você não tem medo? O que você fez para merecer um emprego destes? Não é um lugar horrível? Esta é sempre a introdução para o verdadeiro interrogatório que vem a seguir: É verdade que lá é o lugar onde o homem chora e a mãe não escuta? Você já bateu em alguém? Alguém já tentou te matar? É muito perigoso? O que é que vocês comem? Os presos são muito perigosos? Como funciona isso ou aquilo? É um ritual repetitivo e, com o tempo, cansativo, mas mesmo assim não posso culpá-los. Eu mesmo, por muito tempo tive essa espécie de curiosidade mórbida acerca da realidade do mundo atrás das grades, deste verdadeiro universo paralelo, com sua própria realidade, suas próprias leis, seus códigos não escritos, sua própria linguagem, seus personagens únicos e ímpares. Lembro-me que há alguns a...

Cegueira

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“É dessa massa que somos feitos, metade indiferença e metade ruindade”. A frase, do genial Saramago (foto), define o livro (estou lendo Ensaio Sobre a Cegueira). O alfarrábio é ótimo e um pouco mais fácil de folhar do que as demais obras do mestre português. Para quem ainda tem fé nos bípedes (como nos definiria Schoppenhauer), é um verdadeiro soco no estômago; para quem é realista, um espelho da humanidade. Se você assistiu ao filme de Fernando Meirelles e gostou, não pode perder a obra; caso não tenha apreciado, dê uma chance ao original, que é bem melhor que sua adaptação à 7ª arte. Em minha opinião é o segundo melhor livro do único escritor de língua portuguesa detentor do Nobel de Literatura, ficando atrás somente do Evangelho Segundo Jesus Cristo. É ler pra crer...