Tortura: crime sem justificativa possível

Pau de arara: uma das torturas preferidas pelos militares

Quem conhece meu blog sabe que o mesmo texto que escrevo aqui é traduzido para o inglês em meu outro blog. Para você que não é brasileiro e está lendo este texto compreenda: o Brasil está tomado pela loucura!
Um bom exemplo que tenho visto é a proliferação de supostas “pessoas de bem” defendo não só a volta do regime militar, tema que já tratei anteriormente neste blog, como defendendo as torturas e mortes havidas durante o regime.
Em um post, por exemplo, fala-se que a ex-presidente Dilma fala que foi torturada, mas não fala de seus crimes que, segundo o post, justificariam as torturas sofridas. Em outro, é mostrado uma senhora segurando um cartaz onde afirma ter nascido em 1920, dizendo ainda que que não foi torturada ou morta pelo regime militar brasileiro por “não ter matado, não ter assaltado, não ter explodido carros e não ter roubado bancos ou armas”.
Quando inquiridos, os proprietários das postagens muitas vezes resumem: era uma guerra, a tortura estava justificada…
Outros, quando inquiridos, ainda respondem que o Exército “matou pouco, deveria ter matado mais”, e ainda amaldiçoam a Lei n° 6.683/79, conhecida como “Lei da Anistia”, dizendo que graças a ela os comunistas puderam escapar e tomar o poder no país.
Mas como diria Jack, o Estripador (um torturador convicto, por sinal), vamos por partes.

Guerra é guerra, dizia o torturador

Convenção de genebra: tortura é crime de guerra
Em primeiro lugar, cabe perguntar: tivemos uma guerra no Brasil pós 1964? Bem, cabe pensar que sim e não: sim, estávamos vivendo uma guerra desde o fim da 2a Guerra Mundial, era denominada “guerra fria”, em que o bloco dominado pelos USA e o dominado pela URSS lutavam pelo estabelecimento e manutenção de regiões de influência no globo sem, contudo, entrarem em conflito aberto, incitando, entretanto, lutas entre outras nações; mais ou menos como se dois pais que não se gostassem, ao envés de brigarem entre si, pusessem os filhos para se digladiar…
O Brasil vivia o clima de guerra fria sim, com a direita pendendo para o lado americano e a esquerda para o soviético (embora parte da esquerda se identificasse mais com a China). Neste clima de guerra fria, o golpe militar começou a ser tramado e acabou sendo posto em prática no dia 1º de abril de 1964, tirando não só o presidente do poder como tirando do congresso todos que não fossem abertamente favoráveis ao novo regime, que nasceu com a proposta de convocar novas eleições diretas para o ano seguinte mas, ao contrário, ficou 20 anos no poder.
Quais as atividades guerrilheiras ou guerreiras da esquerda antes de 1964? Nenhuma! Embora o presidente deposto, João Goulart, fosse de esquerda moderada, chegou ao poder de forma democrática e não teve nenhum rompante ditatorial, ao contrário, trabalhou junto às organizações sociais, manteve o congresso aberto (ainda que neste houvesse grande oposição a seu governo), não incitou a guerrilha (inclusive quando deposto, saiu do Brasil sem reagir “para não derramar sangue inocente”, segundo suas próprias palavras).
Concordando ou não com os atos de Jango, temos que admitir, ele não foi um ditador ou incitou uma ditadura de esquerda, apenas não era o político sonhado pela direita brasileira.
Após 1964, os estudantes ganharam as ruas, sendo duramente reprimidos pelo Exército, muitas vezes entrando em batalha campal com este, até que focos de guerrilha armada, de orientação esquerdista, começaram a surgir a partir de 1966.
Tais focos tinham razão? Em minha opinião não, eles não buscavam, tal qual os militares sentados no poder, implantar um regime democrático, apenas queriam que a ditadura tivesse seu viés político, não o viés dos outros, no melhor estilo “guerra fria”.
Analisando desta forma, houve uma guerra no Brasil? Bem, depende de seu entendimento do que é guerra; o que houve realmente foi uma algo totalmente desigual, onde um lado tinha todo o aparato de Estado e auxílio financeiro estrangeiro enquanto o outro era formado por poucas dezenas de utopistas sem qualquer chance real de vitória, mas que serviam como desculpa para o recrudescimento do regime.

Então se poderia torturar os guerrilheiros?

Aí que a porca torce o rabo! Tortura nunca tem justificativa, nem moral, nem legal!
Vamos supor, por um momento, que sua análise (já que eu não defini se era ou não uma guerra) é que o Brasil vivia uma situação de guerra, onde um dos lados era formado pelos militares brasileiros e o outro pelos guerrilheiros de esquerda… nem assim a tortura teria tido justificativa legal (muito menos moral)!
A própria Convenção de Genebra, estabelecida em quatro tratados assinados entre 1864 e 1949, da qual o Brasil é signatário desde suas origens, define que
prisioneiros de guerra – ou seja, uma pessoa, seja combatente ou não-combatente, que é mantido sob custódia por um exército durante ou imediatamente depois de um conflito armado – não podem ser submetidos à tortura, devendo ser interrogados somente sobre seu nome, data de nascimento, posto e número de serviço (se aplicável).
E mais, a convenção torna crime de guerra a tortura e quaisquer atos de pressão física ou psicológica nos prisioneiros, mormente se estes forem civis os quais, segundo a quarta convenção, de 1949, não podem ser sequestrados.
Ou seja, temos aqui duas possibilidades:
1ª - A de que não vivíamos uma guerra no país, e então os militares cometeram graves crimes contra seus próprios cidadãos, tornados presos políticos, violando o direito internacional, devendo ser julgados por atos contra civis; ou
2ª – vivíamos uma guerra e os guerrilheiros de esquerda capturados eram prisioneiros de guerra e, portanto, o Exército cometeu crimes de guerra e deveriam ser julgados em Haia.
Em nenhuma das hipóteses é possível justificar, seja moral, seja legalmente, a tortura e a execução de presos.

Só guerrilheiros torturados?

Herzog: "suicídio"
Mas a coisa é pior do que isso! Mesmo que consideremos a situação pós-64 uma guerra, é, no mínimo, desonestidade dizer que apenas quem pegou em armas sofreu torturas ou foi executado.
Não vou nem entrar aqui no mérito de que provavelmente diversas ações creditadas à esquerda foram na verdade orquestradas e levadas a cabo pela direita, a exemplo das que não deram certo no Riocentro em 1981 (veja mais em https://pt.wikipedia.org/wiki/Atentado_do_Riocentro), ou a orquestrada pelo então capitão do exército (e atual presidenciável) Jair Bolsonaro, em 1986 (veja mais em https://veja.abril.com.br/blog/reveja/o-artigo-em-veja-e-a-prisao-de-bolsonaro-nos-anos-1980/), basta apenas que analisemos casos como o do jornalista Vladimir Herzog, diretor do departamento de telejornalismo da TV Cultura, além de professor de jornalismo na Universidade de São Paulo (USP).
Vlado, como era chamado, era um homem de esquerda, mas era abertamente contrário às ações armadas que, dizia ele, apenas davam mais força à ditadura; ele não era, desta forma, um guerrilheiro, não armou ações violentas, ou nos dizeres do tal cartaz da senhora nascida em 1920, não matou, não assaltou, não explodiu carros e não roubou bancos ou armas. Era, ao contrário, um pacífico pai de família, com residência conhecida que em 24 de outubro de 1975 foi chamado ao 2º Exército para dar esclarecimentos. Vlado se apresentou no dia seguinte espontaneamente ao Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), onde sofreu torturas tão pesadas que 24 horas depois, morto na tortura, foi forjado seu suicídio, uma prática usual na época para justificar as mortes no cárcere político.
A questão é que, no caso de Vlado, a armação foi tão mal feita que acabou vazando e trazendo à tona a realidade das execuções e da tortura, que eram mantidas em sigilo (e mesmo negadas) pela ditadura.
Ah”, escuto alguns leitores mais à direita dizerem, “mas ele, embora não tivesse pegado em armas, era um militante comunista”…
Ok, senhores, e como justificam nisso tudo as prisões, torturas, desterros, estupros, abortos e mortes contra crianças perpetradas pelos militares então no poder? (para saber mais leia http://www.gazetadopovo.com.br/ideias/6-crimes-hediondos-cometidos-contra-criancas-durante-a-ditadura-militar-50sx6odlxx04sngz56ridwdmm, ou o excelente “Infância Roubada”, lançado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva. O crime destas crianças era semelhante ao do Vlado, apenas mais inocente ainda: serem filhos de militantes de esquerda!
Tais atos também podem ser classificados, em suas consciências como “atos de guerra”?
Aliás, o próprio caso do homem que deu nome à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, Rubens Paiva, é também emblemático. Jornalista e ex deputado, paiva foi preso em 1969 por suspeita (nunca comprovada) de que era contato de guerrilheiros. Logo após a prisão, segundo nota oficial dos órgãos de segurança à época, o carro que conduzia Rubens Paiva teria sido abalroado e atacado por indivíduos desconhecidos, que o teriam sequestrado dois dias depois da sua prisão. Assim, ele foi dado oficialmente como desaparecido.
Sua morte só foi confirmada mais de 40 anos depois, após depoimentos de ex-militares envolvidos no caso: Torturado e assassinado nas dependências de um quartel militar entre 20 e 22 de janeiro de 1971, seu corpo foi enterrado e desenterrado várias vezes por agentes da repressão, até ter seus restos jogados ao mar, na costa da cidade do Rio de Janeiro, em 1973, dois anos após sua morte; outro caso de crime de guerra?

A lei de anistia

Crianças prisioneiras sendo identificadas: há justificativa?
Por último, chega a ser cômico quando os militantes de extrema direita amaldiçoam a Lei n° 6.683/79, conhecida como “Lei da Anistia”, dizendo que graças a ela os comunistas puderam escapar e tomar o poder no país.
É graças a esta lei, que em seu artigo 1º diz:

É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares e outros diplomas legais.

Que os militares que cometeram crimes durante o regime, no Brasil, nunca enfrentaram o banco dos réus, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, na Argentina, no Uruguai e no Chile com relação às ditaduras do mesmo período.
Ou seja, senhores, não são apenas vocês que acham que a tal lei não foi boa, todos os familiares de torturados e desaparecidos preferiam que ela nunca tivesse existido, e que os crimes cometidos contra si ou contra parentes e amigos, tivessem sido julgadas e os culpados punidos, fosse ou não por crime de guerra...

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