Semana Semana Negra, a revolta da vacina e a dança da morte

Dnase Macabre: igualando a todos na hora da morte
Quem não se liga em história, em especial a história da arte, talvez nunca tenha ouvido falar da Danse Macabre (veja a imagem que abre este texto), a alegoria artístico-literária do final da Idade Média sobre a universalidade da morte, insipirada nos surtos de peste negra vividos no Século XIII, a qual expressa a ideia de que não importa o estatuto de uma pessoa em vida, a dança da morte une a todos, ricos e pobres, nobres e plebeus, pecadores e santos.
Por outro lado, quem não se liga em história talvez nunca tenha ouvido falar da revolta da vacina, um motim popular ocorrido entre 10 e 16 de novembro de 1904 na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, contra a lei que determinava a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola e as campanhas de saneamento lideradas pelo cientista, médico, bacteriologista, epidemiologista e sanitarista brasileiro Oswaldo Cruz durante o governo do prefeito Pereira Passos e do presidente Rodrigues Alves, este último vítima da Gripe Espanhola em 1918.
É bom esclarecer que, naquela época, a varíola, a peste bubônica e a febre amarela estava tão ativas na “Cidade Maravilhosa” que os navios estrangeiros evitavam aportar ali com medo da contaminação; não à toa charges da época mostravam a realidade com toques de Danse Macabre, como pode ser visto no exemplo abaixo.
 
Danse Macabre (e) e charge brasileira da revolta da vacina (d): clara inspiração
As medidas de Cruz visavam combater todas estas enfermidades, pois além da vacina, o saneamento eliminava os focos de Aedes aegypti, o vetor da febre amarela, e os ratos, cujas pulgas são vetores da Yersinia pestis, bacteria causadora da peste bubônica.
Passados 116 anos, não há mais quem tenha a mínima sombra de dúvidas sobre o arrazoamento das ações de Oswaldo Cruz, a ponto de ele hoje dar nome a praças, logradouros, navio da marinha brasileira, já ter estampado selos e moedas nacionais; mas naquele longínquo ano de 1904, um grupo de militares e positivistas, com apoio de alguns setores civis, tentou se aproveitar do descontantamento da população sem letramento científico, mobilizando o povo contra o governo e tentando um golpe de estado que, entretanto, acabou derrotado.
O saldo desta tentativa de quartelada foram 30 mortos, 110 feridos, 461 deportados para o Estado do Acre e 945 pessoas presas na Ilha das Cobras; ou seja, o golpe de estado frustrado acabou em uma espécie de Danse Macabre para vários incautos, mas poderia ter sido muito pior se tivessem vencido, pois o império das doenças teria continuado. O saldo das reformas de Alves, Passos e Cruz, pelo contrário, transformaram o Rio em uma cidade turística conhecida internacionalmente e reduziram sobremaneira o sofrimento e a mortalidade, em especial nas áreas mais carentes do Rio de Janeiro.

A história se repete; farsa ou tragédia?

2020, Brasil; vemos a história se repetindo. Desta vez não são a febre amarela, a peste bubônica (doenças que ainda afetam este gigante deitado em berço esplêndido) ou a varíola (cuja infecção nativa foi erradicada pela ciência no decorrer do século XX), mas um vírus que migrou de algum outro animal (as apostas da ciência se dividem entre o pangolim e alguma espécie de morcego) e infestou primeiro a China e, depois, o resto do mundo; seu nome: SARS-CoV-2 (ou síndrome respiratória aguda grave Coronavírus 2), causador da Doença Coronavírus 19 (Covid-19, na sigla em inglês). A ciência mundial, a OMS e mesmo o Ministério da Saúde (na data da escrita deste, liderado pelo médico ortopedista Luiz Henrique Mandetta) são unânimes em apontar que, não havendo ainda uma vacina ou uma medicação que tenha se mostrado eficaz contra (embora existam algumas promessas que precisam de maiores testes), a única solução é ficar em quarentena e assegurar que o número de infectados cresça controladamente, sem ultrapassar o limite de doentes que nosso sistema de saúde pode tratar, evitando assim tragédias como na Itália (16 mil mortes até esta data), Espanha (13 mil fatalidades) e USA (10 mil mortes); ou mesmo caos social como o que está acontecendo no Equador, onde os mortos estão empilhados nas ruas.
"Semana Black Week" ou "Semana Semana Negra": ciência pra quê?

Mas, enquanto a ciência nos aponta a direção sensata a seguir, um grupo de, adivinhem... militares e positivistas, com apoio de alguns setores civis, prega o fim da quarentena, a reabertura do comércio, a volta às aulas, etc. Seu coup de grâce, agora, depois de um jejum e orações públicas (cujos efeitos em crescimento de infectados somente saberemos nas próximas semanas), é convocar uma “Semana Black Week”, cujo maior pecado não é o pleonasmo de colocar “semana” e “week” no mesmo título, mas sim convocar o comércio a abrir com promoções por uma semana, a partir de hoje (7/4), e convocar a população a gastar, a comprar e a consumir como se não houvesse amanhã afinal, diz a bolsonarista Val Lopes, garota propaganda do evento, “temos o direito de ir e vir”, dando a entender que esta “ciência esquerdista” quer é implantar uma ditadura comunista para nos prender em casa com uma doença inventada, como alguns setores olavistas afirmam, pela Globo e pelo PT para derrubar o presidente.
Confesso que sei há muito tempo do poder da Rede Globo; acompanhei-o em 1989, quando da eleição de Fernando Collor. Por outro lado, sei que o PT é um partido forte, talvez a maior força partidária individual no país... mas daí a sugerir que os dois se juntaram e conseguiram armar uma farsa em nível global, juntando cientistas, governos e a OMS somente com o intuito de derrubar o cada vez mais impopular Bolsonaro... bom, em minha modesta opinião, além de claro devaneio de pessoas que ainda desconhecem que a Guerra Fria acabou e ainda procuram comunistas embaixo da cama, poderia ser claramente diagnosticado como um episódio de megalomania, onde o mundo se une, sob o comando de uma rede de comunicação e de um único partido político para, advinhem, derrubar o Messias!
Mais do que uma simples fantasmagoria de megalomaníacos com delírios persecutórios, entretanto, esta atitude é uma afronta ao bom senso, contrária a todos, repito TODOS os conselhos dos especialistas em nível mundial e colocam em risco a saude não só dos que por ventura participarem de tal evento, mas da sociedade brasileira como um todo, pois o crescimento exponencial que esta ação destrambelhada pode ocasionar nos põe em risco de colapso geral de nosso já frágil sistema de saúde -- mais fragilizado ainda nos últimos anos com os sucessivos cortes de recursos realizados pelo atual governo (veja gráfico abaixo).

Não à toa, portanto, enquanto os bolsonaristas tentam desesperadamente nos convencer que sua “Semana Semana Negra” será uma festa, uma dança à liderança de seu Messias, eu a enxergue como um exemplar de Danse Macabre. Espero sinceramente que a massa de nossa população não caia neste canto de sereia bolsonarista, e que o “Black” da promoção por eles proposta não se converta na escuridão do colapso de nosso sistema de saúde, nas trevas da morte abraçando e dançando com todos nós, ricos e pobres, nobres e plebeus, pecadores e santos.  

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