Contos do Universo Paralelo



Não falha nunca. Cada vez que, nos últimos anos, fui apresentado a uma pessoa e relatei-lhe minha profissão ela invariavelmente dispara uma das três perguntas básicas, todas elas versões de um mesmo questionamento: Você não tem medo? O que você fez para merecer um emprego destes? Não é um lugar horrível?
Esta é sempre a introdução para o verdadeiro interrogatório que vem a seguir: É verdade que lá é o lugar onde o homem chora e a mãe não escuta? Você já bateu em alguém? Alguém já tentou te matar? É muito perigoso? O que é que vocês comem? Os presos são muito perigosos? Como funciona isso ou aquilo?
É um ritual repetitivo e, com o tempo, cansativo, mas mesmo assim não posso culpá-los.
Eu mesmo, por muito tempo tive essa espécie de curiosidade mórbida acerca da realidade do mundo atrás das grades, deste verdadeiro universo paralelo, com sua própria realidade, suas próprias leis, seus códigos não escritos, sua própria linguagem, seus personagens únicos e ímpares.
Lembro-me que há alguns anos li em algum lugar que a guerra e a cadeia são os únicos dois lugares onde o homem mostra sua real face e eu, um romântico inveterado (muito mais no sentido ideológico do que no sentimental), sempre quis conhecer essa face. Não lutamos uma guerra desde 1945 (não contando, é claro, as guerras internas tipo ditadura militar x subversivos ou a guerra diária que se vê nos bairros mais afastados das grandes cidades). Assim, sempre me restou a cadeia, aquele lugar onde o homem, pensava eu, vira animal; o famoso homo lupus homarum, dos antigos romanos.
Assim, sempre fui fiel consumidor de materiais que versassem sobre o tema, tais como o ótimo “Estação Carandiru”, do Dr. Varella, ou Na Cadeia, um mangá escrito por um ex-presidiário, ou ainda filmes como “À Espera de Um Milagre”, “Um Sonho de Liberdade” ou séries como “Oz”. Porém, além de todas essas obras versarem sobre realidades distantes da minha (Rio de Janeiro, EUA, Japão...) não respondem à pergunta básica que, eu próprio, nunca me havia feito (e que também nunca me fizeram), mas que, hoje, creio fundamental para que se compreenda a vida (tanto dos reclusos quanto dos funcionários): como definir a cadeia em uma palavra?
É, como você definiria em uma palavra a vida atrás das grades? Seria VIOLÊNCIA, como nos mostram os filmes holliwoodianos? Seria SOLIDARIEDADE, como nos mostra o Dr. Dráuzio? Seria CONFLITO? Seria SOBREVIVÊNCIA?
Neste pouco mais de meia década em que trabalho no sistema prisional gaúcho, minha realidade me mostrou que não, que embora essas palavras possam ser usadas a uma situação ou outra, a palavra que melhor define a vida da carceragem é TÉDIO.
É, caro leitor, creia-me, Tédio (com um T bem grande pra você, como diria o Renato Russo). O tédio infindável de um dia igual ao outro, de uma rotina de hábitos imutáveis e esmagadores, tanto para um lado da grade quanto para o outro.
“Mas nunca acontece nada nesse lugar?”, pergunta o leitor mais ansioso, já prestes a largar o texto, “e as rebeliões? E as mortes que escutamos no Jornal Nacional?”
Sim, caro leitor, esclareço-te: existem sim rebeliões, existem sim assassinatos frios, existem sim batidas e lutas, demonstrações de bravura e de covardia, violência sexual, drogas, injustiça, luta pela sobrevivência, amores impossíveis e tudo o mais que você já tenha ouvido falar; mas esse todo, juntado e rejuntado, quando comparado à realidade do dia-a-dia, segundo meus cálculos, não chega a 1% da realidade do ambiente prisional.
O resto, os outros 99%, são compostos basicamente de um infindável abrir e fechar de portas, conferências, revistas que não dão em nada, relatórios, relatórios e mais relatórios, como de resto o gera todo o burocrático sistema judicial romano.
É, pois, nessa mesmice de trabalho e de cumprimento de pena que tenho vivido há quase dez anos, tanto na cadeia onde estou lotado, quanto nas diversas cadeias onde prestei reforço mediante diárias, conseguindo garantir um reforço ao minguado salário que o governo nos paga.
E foi neste feijão-com-arroz do dia-a-dia que nasceu o desejo de escrever sobre o assunto. É, ele nasceu dentro da cadeia, pois ele é apenas uma extensão de um velho costume vigente no cárcere (novamente tanto do servidor quanto do preso): o de contar histórias. O de relatar e dar saborosas pitadas de inverdade a histórias acontecidas, a maioria delas dentro do próprio ambiente prisional.
Assim, as histórias que aqui passo a narrar, são fatos que vivi, vi ou que me foram relatados em longas tardes de pouco serviço, em extensas noites de folga em diárias, em compridas viagens, entre chopes ou vinhos em algum bar, comendo pinhão na serra, tomando mate na fronteira, no momento de relaxar após longas horas de serviço...
Apesar de baseados em fatos reais, porém, os textos que ora passo a postar devem ser entendidos como ficcionais, já que todos os cenários, fatos e personagens foram alterados, recombinados e tiveram seus nomes trocados, a fim de que as pessoas envolvidas não se sintam nem sejam prejudicadas ou vejam expostas ao público histórias que deveriam ficar guardadas apenas nas lembranças das enfadonhas horas do cárcere.
Como, porém, diria o Luiz Fernando Veríssimo, “uma mentira é uma verdade que deixou de acontecer”. Assim, embora ficcionais, os relatos escritos por esse humilde narrador podem (e devem) dar ao leitor uma idéia mais clara e realista da vida atrás dos muros, cercas e grades que retém homens e mulheres que, ou ousaram desafiar à lei, ou ousaram tentar cumpri-la.

Comentários

  1. legal, sabe que estou fazendo uns estudos e trabalhos dentro de sociologia da violencia, teu blog tem me ajudado,
    muito legal teus textos.

    e os treinos? como anda o aikido? ando com muita vontade de treinar.

    abraço

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