Vivendo de cultura


Eu estava no terceiro whisky quando ele chegou.
“Cara, quanto tempo! E os bacurizinhos como vão?”
Sempre ri intimamente de seu jeito acariocado de falar, afinal, ele o adquiriu nos poucos meses em que serviu em um quartel no Rio...
Apesar de, naquele momento, estar disposto a ficar só com minhas conexões neurais, não pude me furtar a ser gentil:
“Aguirre, há quanto tempo! Como vai o Fernando Pessoa de Uruguaiana?”
“Que é isso, cara”, diz ele, tentando fingir modéstia, “é bondade sua...”
“Senta aí e vamos tomar um ‘goró’.
“Tá, mas é só um, tenho que seguir trabalhando...”
“E o que tem feito da vida?”
Para que fui perguntar? Seus olhos brilharam e marejaram:
“Tenho tentado viver de cultura nesta cidade ingrata e inculta.”
“Viver de cultura? E como é isso? Vai dizer que tá sendo sustentado por uma professora?”
“Antes fosse”, responde ele, limpando o suor da careca precoce, enquanto tenho uma vontade quase incontrolável de rir de seus olhos esbugalhados atrás dos grandes óculos, “antes fosse... estou tentando viver dos meus livros.”
“De teus livros? Não sabia que escrevias!”
“Livros de poesia, mané!”, diz ele, tirando da bolsa finos volumes impressos em jato-de-tinta e colados com tenaz, “veja, já escrevi quatro”.
E abre um, aleatoriamente, lendo um de seus poemas pós-modernos-anarco-punk-nacionalista-românticos, mas só consigo prestar atenção à saliva que salta de sua boca a cada estrofe, enquanto os olhos verdes se abrem ainda mais.
“E então, o que achou?”, questiona por fim.
“Belíssimo!”, minto, “és um incompreendido”.
“Então me compra um?”
“Quanto é?”
“Quinze pila.”
“Ih, se tivesses chegado uns dois whiskys antes eu comprava.”
“Então me paga um lanche?”, pergunta, salivando pelo meu prato de batatas fritas frias.
“Claro. Garçon!”, chamei, “uma torrada, por favor.”
Por fim, ‘doou-me’ um de seus livros:
“Este ficou mal impresso”, disse com desdém, e partiu, pois já avistara, em outro bar, outro amigo para quem vender um volume e, quem sabe, viver de cultura por mais um dia.

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