Referendo e mentiras estatísticas
Um ditado
popular diz que existem as mentiras, as grandes mentiras, as mentiras imensas e
as estatísticas. É famosa, por exemplo, a anedota que diz que certo sujeito
morreu afogado em um lago com profundidade média de 20 cm (só que, na parte em
que ele escolheu nadar, o lago tinha 5 metros)...
Existe um
plebiscito na internet requerendo um referendo popular para tornar o Brasil,
oficialmente, um país cristão. Referendo, para quem não sabe, é um instrumento
constitucional, regulamentado pela Lei n.º 9.709/98, como forma da população
retificar uma norma.
Se aprovado, o
referendo modificaria o Art. 19 da Constituição Federal, em seu Inciso I, que
diz que é vedado ao Estado
estabelecer cultos religiosos ou igrejas,
subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes
relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração
de interesse público.
Ou seja,
acabaria com a laicidade do Estado brasileiro, garantindo que, em quaisquer decisões
governamentais, além da Constituição deva ser consultada a Bíblia. Até imagino os deputados da bancada evangélica disputando a tapa
o direito de integrar a Comissão de Direito Bíblico...
Brincadeiras à
parte uma legislação como essa garantiria a perseguição do Estado a minorias
religiosas ou que tivessem uma visão de mundo diferente da religiosidade cristã
e abriria espaço para um Estado discriminatório, nos mesmos moldes dos Estados
teocráticos islâmicos, duramente criticados em páginas cristãs (e com razão) por
não permitirem a liberdade religiosa. A única diferença neste caso é que os
discriminados não seriam os cristãos, mas as demais visões de mundo.
Não me entenda
mal; não é porque a proposta é feita por cristãos que sou contra. Da mesma
forma o seria se propusesse que nos tornássemos um país judeu, muçulmano,
budista, umbandista ou mesmo ateu. Pelos mesmos motivos, embora não seja religioso, se o Estado propusesse uma
lei proibindo o cristianismo ou qualquer outra religião, pode ter certeza de
que estaria entre aqueles que protestariam contra o ato, pois acredito na
laicidade, ou seja, que o Estado deve deixar as crenças (ou falta delas) como algo
pessoal, não devendo tomar partido.
Na
justificativa dada pelos proponentes do abaixo-assinado, eles não deixam claro a
justificativa do referendo, assim como tampouco deixam claro qual “cristianismo”
desejam ver oficializado; se o protestante, pentecostal, católico, espírita ou
mesmo esotérico; uma vez que todos esses seguem sua visão do Novo Testamento
bíblico e, portanto, são cristãos.
Entretanto,
pelo modus operandi da ação proposta,
bem como pelas páginas que a apoiam, é fácil concluir que a proposição tem origem
evangélica, e requer que seja sua
visão de cristianismo a adotada. E em que se baseariam para propor tal, se eles
não são maioria, constituindo, atualmente, 20,23% da população. Se fossemos ver
pela maioria, então deveríamos ser um país católico, pois apesar da queda de
25,43% da religião romana em nosso país desde o Censo IBGE de 1970, eles ainda
são 68,43%. Tampouco os evangélicos podem requerer dizendo que o cristianismo,
como um todo, tem crescido no país, pois se analisarmos os dados do IBGE,
veremos que o número geral de cristãos decresceu 8,57% nos últimos 40 anos,
passando de 96,97% da população em 1970, para 88,66% em 2010.
“Tá espertinho”,
já vejo o leitor atento me criticar, “mas você está manipulando os dados; a
religião que mais cresce no país é a evangélica”.
Bom, se
analisarmos os últimos 40 anos, realmente a religião evangélica cresceu
impressionantes 289,03%, passando de reles 5,20% para 20,23% das consciências
brasileiras.
Então, é por
isso que devemos nos tornar uma “nação cristã”?
Não. Em primeiro
lugar porque a democracia não pode ser a ditadura da maioria, ela deve respeitar
as minorias e o Estado deve servir a todos seus cidadãos, “sem distinções de
qualquer natureza”, como preceitua o caput
do Art. 5º da Constituição.
Em segundo
lugar, pasmem, porque se é para manipularmos números – fazendo valer a frase
com que comecei este texto – e se você ficou assombrado com o crescimento de
quase 300% dos evangélicos, então devemos é tornar nosso país um país
oficialmente “sem religião”, pois, sempre segundo o IBGE, esta categoria – que
inclui ateus e agnósticos – passou de 1% em 1970 para 8% em 2010, tendo um
crescimento de 700%, ultrapassando o percentual que os evangélicos atingiam no
começo dos 1970 e chegando atualmente a quase metade do percentual que estes
ocupam, e tudo isso sem canais de TV, programas de rádio, templos por todo o
lado ou missionários batendo de porta em porta.
Como explicar
isso? Bom, se é para mentir com números, então não posso deixar de associar
esse crescimento vertiginoso à queda do analfabetismo (de 33,6% em 1970 para
9,7% em 2010, representando um decréscimo de 71,13%) e o crescimento do Ensino Superior,
que passou de 425.478 vagas oferecidas em 1970 para 3.120.192 vagas em 2010, um
crescimento de 633,34%, espantosamente próximo ao crescimento do grupo “sem
religião” no mesmo período...
Referências
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Brasil de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm.
Acesso em 09/06/2012.
___________. Lei Nº 9.709, de 18 de novembro de 1998. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm.
Acesso em 09/09/2012.
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Acesso em 09/06/2012.
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Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n52/a03v1852.pdf.
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de Jesus de. EVOLUÇÃO DA EDUCAÇÃO
Wikipédia, a Enciclopédia Livre. Disponível em http://pt.wikipedia.org. Acesso em
09/06/2012.
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