Holanda, cordialidade, estupro e torcida de futebol

Raízes do Brasil1 é um livro do historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda, publicado2, mas sim que o brasileiro pensam e fazem tudo a partir da afetividade, que têm uma imensa dificuldade para entender as formalizações políticas e, portanto, incapazes de separar o privado daquilo que é público. Daí talvez saiam, por exemplo, a dificuldade de nossos políticos em separar suas contas pessoas das contas do erário público, embora saliente-se o fato de que o fluxo de caixa é em mão única, das contas públicas para as contas particulares.
Sérgio Buarque de Holanda
pela primeira vez em 1936, que traz uma interpretação da formação da sociedade brasileira. Uma das ideias radicais trazidas no livro é o conceito de que o brasileiro é um povo cordial. Não se deve entender, entretanto, esse “cordial” como “do coração, verdadeiro, que conforta o coração, conforto”
O fato é que é muito difícil não só fazer política, mas mesmo debater política em um nível civilizado no Brasil; em geral, abandona-se o combate de ideias (penso que tal política pública é melhor por isso ou por aquilo) e parte-se para o embate ad hominem3; ao invés de argumentar-se: penso que o socialismo (ou a democracia burguesa, ou a ditadura positivista) é melhor por que bla bla bla (e coloque suas razões nesse bla bla bla), parte-se logo para: você é um coxinha (ou petralha, ou comunista, ou fascista, ou LMNB - substitua os símbolos por suas palavras de baixo calão preferidas).
Tampouco importam os argumentos que o outro lado ponha na mesa (nos raros casos em que isso é feito), se é “o outro lado”, automaticamente os argumentos devem ser rejeitados sem que se pense no assunto, ou seja, não se debate política, tem-se time para torcer; política no Brasil virou futebol: não importa que meu time perca, que tenha péssimos jogadores ou mesmo que ganhe no tapetão, o importante é que meu time vença e que o adversário perca; esse ‘pensamento cordial’, emocional, sem base racional, criou a figura do ‘outro lado’, aquele inimigo que, infelizmente, mora no mesmo país que nós, que estamos ‘do lado certo’; daí as palavras de ordem de “vai pra Cuba”, ignorando-se que aquele socialista é tão brasileiro quanto quem está bradando; mas daí também o “não discorde de uma feminista quando ela fala (ou de um militante de movimento negro, ou de um sem-terra...), pois discordar é passar vergonha”, como se não concordar com um movimento (não importa quão justo você pense que ele é) seja vergonhoso... você pode passar vergonha sim, contanto que não tenha argumentos, mas é perfeitamente possível discordar de qualquer coisa com bons argumentos para isso. Em suma, não se debate, apenas quer-se que nosso lado vença e, acima de tudo, queremos que “o outro lado” perca.
Mas quem perde com isso, na verdade, somos todos nós. Perdemos por não termos um debate político qualificado, que discuta os reais problemas do país e busque soluções (importa somente que os problemas foram criados exclusivamente pelo “outro lado”), não observamos candidatos pelo currículo e pelas propostas, apenas os dividimos entre “os do meu lado” e “os do outro lado”, não pensamos se uma proposta vai ser benéfica para o país, ou para o povo, ou para a economia... apenas nos perguntamos: essa proposta é a proposta “do nosso lado” ou “do outro lado”? Até mesmo temas que, em princípio, não têm origem política estão sendo discutidos passionalmente como se fossem times de futebol, a exemplo da Teoria da Evolução das Espécies (“coisa de comunista” querendo destruir a religião), da influência genética na personalidade e das diferenças físicas entre os sexos (“coisa de positivista” querendo achar desculpa para o machismo e o patriarcado) e do aquecimento global (acusado pela esquerda de ser armação para que o terceiro mundo não progrida tecnologicamente e pela direita de ser armação da esquerda para impedir a industrialização, não importa para nenhum dos dois lados que a ação antrópica seja apontada como causa por 98% dos estudos climáticos).
Sei que há diversas discordâncias de intelectuais brasileiros com relação a Holanda, em especial pelo fato do historiador não se enquadrar em nenhum dos dois grandes grupos de pensadores brasileiros: os positivistas e os marxistas4 5 (ou seja, o autor de Raízes do Brasil é “do outro lado” não importando de que lado você esteja), mas sua visão sobre nossa psique me surpreende, e pode ser vista, por exemplo, em uma dupla da política brasileira: os deputados Bolsonaro e Maria do Rosário. Só de citar o nome de ambos, tenho certeza, meus leitores se arrepiaram de asco: metade por ouvir um dos nomes, metade o outro.
Bolsonaro
Foi emblemático um episódio na Câmara de Deputados em que os deputados bateram boca (como já o fizeram tantas vezes), concluindo com Maria chamando Bolsonaro de estuprador e Bolsonaro dizendo que não estupraria Rosário por que esta não merecia. Afora o fato de que tal postura é indigna por parte de ambos, que atacaram-se com nosso velho conhecido ad hominem sem uma real troca de ideias, talvez confundindo o fato de integrarem a Câmara Baixa do sistema bicameral com obrigatoriedade de fazer baixarias. Quem estava certo? E quem estava errado? Não sei quanto a você, caro leitor, eu considero ambos como errados. Em primeiro lugar a deputada do PT, quando chamou o deputado atualmente sem partido de estuprador, estava o acusando de um crime (previsto no Código Penal em seu Art. 213, com pena de reclusão de seis a dez anos), isso, é claro, sem que tivesse qualquer prova de que o deputado tivesse cometido tal crime; não importa, Bolsonaro não concorda com a visão de mundo de Maria? Então ele é estuprador, mesmo que nunca tenha “constrangido ninguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”6. E Bolsonaro? Bem, embora discorde da tese de que ele “ameaçou à deputada de estupro”, penso que ele ‘errou feio, errou rude’, pois não deve ser a postura de um deputado tecer o comentário de que ‘tal mulher não merece ser estuprada’; nenhuma mulher, em nenhuma circunstância merece ser estuprada. De fato, eu não votaria em nenhum dos dois deputados por não concordar com diversas posições de ambos, ainda que concorde com algumas poucas posições, novamente de ambos; o caso todo é que, agora, o deputado carioca é pré-candidato à Presidência da República, e novamente temos aí uma celeuma, com metade dos brasileiros vendo-o como o ‘salvador da pátria’, e outra metade desejando que o deputado seja proibido de exercer qualquer cargo público; como me posiciono? Como já disse, o deputado não tem meu voto, mas creio que deve ser respeitado como uma possibilidade democrática, da mesma forma que a volta de Lula ou uma candidatura de Marina Silva; é preciso que qualquer corrente ideológica possa livremente se manifestar e apresentar candidatos em uma democracia.
Isso pode igualmente ser aplicado à Dilma. Se você pensa que, em especial em seu segundo mandato, Dilma estava perdida e foi uma péssima presidente, então pensamos de forma parecida. Entretanto, pensar que ela não era uma boa administradora pública não me faz pensar que Aécio, por exemplo, teria sido melhor, ou defender que, como ela não foi boa, automaticamente a esquerda como um todo e todas suas ideias estejam automaticamente erradas e devam ser varridas da face da terra.
Administração pública não deve ser um time para torcer
Já, por outro lado, se você é daqueles que afirmam que não existe neutralidade, que ou você concorda integralmente com a esquerda e suas teorias de opressores x oprimidos, ou você está do lado do opressor, tenho uma má notícia: você igualmente está tratando política como torcida de futebol, e administração pública é organizar e mediar às várias forças sociais em busca do bem comum, não um time para se torcer!
Enquanto dividirmos cordialmente o Brasil entre “nosso lado” que está sempre com a razão e “o outro lado” que está sempre errado, além de estarmos dando a razão para Holanda (esse homem insuportável que não está nem do “nosso lado”, nem do “outro lado”...) e sua teoria do “brasileiro cordial”, estaremos fadados a viver em um país dividido, sem rumo e com debates edificantes sobre quem é coxinha ou petralha, estuprador ou sem-merecimento-de-estupro, sem chegar a lugar algum favorecendo, dentre outras coisas, que a cordialidade permita que nossos políticos mantenham sua dificuldade em separar suas contas pessoas das contas do erário público.

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1 – HOLANDA, S.B. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
2 - "Cordial", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [online], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/cordial [consultado em 24-07-2017].
3 - Argumentum ad hominem (do latim, argumento contra a pessoa) é uma falácia identificada quando alguém procura negar uma proposição com uma crítica ao seu autor e não ao seu conteúdo; cfe: HEGENBERG, L.; HEGENBERG, F.E. Argumentar. Rio de Janeiro: E-papers, 2009.
4 – COSTA, S. O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. In: Sociedade e Estado, vol.29, n.3, Brasília, Sept./Dec. 2014.
5 – HOLANDA, S.B. História Geral da Civilização Brasileira: Brasil Monárquico, Tomo II, Vol. 7. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
6 – Texto do Artigo 213 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940, que institui o Código Penal Brasileiro.


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