Marxismo é ciência?
A manchete não deixava espaço para dúvidas: “Sexo não vende mais, ativismo
vende. E as marcas sabem disso”1. A matéria, publicada por um amigo no
Facebook me trouxe a reflexão: “olha só o capitalismo se reinventando novamente”,
me levando a lembrar das leituras de Marx da juventude e de sua certeza determinística
de que o capitalismo estava em crise inexorável, levando fatalmente à sua falência
e derrocada frente à evolução inexorável da história para o socialismo e, finalmente,
o comunismo2. Esta teoria é considerada científica pelos marxistas,
que veem na história, conforme Marx pregou a ação do determinismo, ou seja,
está determinado que a história siga o curso traçado por Marx, chegando-se,
enfim, ao comunismo, em uma versão da segunda metade do século XIX do
determinismo de Laplace.
De fato, Marx é um produto de seu próprio tempo como todo homem, conforme
defende Hegel, por sinal uma das principais influências de Marx; e que tempo
era esse? Marx viveu sua vida adulta na Era Vitoriana, ou seja, durante o
governo da Rainha Vitória, do Reino Unido, de fato, Marx tinha 19 anos em 1837,
quando a rainha assumiu o trono, e morreu em 1883, 18 anos antes de Vitória, ou
31 anos antes do fim da Era Vitoriana, que vários historiadores situam no
começo da 1ª Guerra Mundial, em 1914. Nascido em plena revolução industrial
período Vitoriano foi uma era de reformadores e teóricos e, acima de tudo, de
forte cientificismo, uma época em que se acreditava que muito em breve a
ciência nos daria todas as respostas e resolveria todos os problemas; destarte,
não apenas Marx foi influenciado por ela, como também Comte e seu positivismo,
que apesar das fortes desavenças com o marxismo é uma espécie de irmão deste,
ambos acreditando em uma ditadura “científica” como solução para os problemas
do mundo.
Um dos problemas em analisar-se se o marxismo (e o positivismo) é
científico é a definição do que é ciência. De fato, a palavra tem diversos
significados possíveis. O Michaelis1, por exemplo, classifica
ciência como “conhecimento sistematizado como campo de estudo”, mas também como
“saber adquirido pela leitura e meditação” ou “estudo focado em qualquer área do
conhecimento”, ou seja, é possível, com tal abrangência, chamar de ciência não
só química e física, mas igualmente astrologia e marxismo. O problema aí é o
que o físico americano Thomas Kuhn – que também atuou como filósofo da ciência –
classifica como incomensurabilidade, ou seja, que dois grupos podem usar os
mesmos termos usando, contudo, um significado completamente distinto. O caso é
que, embora o marxismo possa ser definido como ciência quando se usa o significado
de “conhecimento”, seguindo ipsis litteris
sua origem latina (scientia, ou
"conhecimento"); entretanto, o marxismo (e igualmente o
positivismo e a astrologia) não pode ser considerado ciência usando-se a mesma
definição, por exemplo, da física, que é o de sistema de adquirir conhecimento baseado
no método científico bem como o corpo organizado de conhecimento conseguido através
de tais pesquisas. Como método científico entenda-se as regras de procedimento
que produzem o conhecimento científico, ou seja, juntar evidências empíricas
verificáveis baseadas na observação sistemática e controlada, geralmente
resultantes de experiências ou pesquisas de campo e analisa-las com o uso da
lógica3, mais do que isso, entretanto, o marxismo fere a demarcação popperiana
do que é ou não ciência, aceita pela academia no mundo todo, com exceção dos marxistas.
A demarcação de Popper é denominada falseabilidade ou refutabilidade, e é baseada na necessidade de que, para
um conhecimento ser considerado científico, haja pelo menos um experimento ou
observação factíveis que, fornecendo determinado resultado, implique a
falsidade da asserção, isto é, que se o conhecimento for falso, possa ser
provado falso. Por exemplo, a asserção “todos os cisnes são brancos” poderia
ser falseada pela observação de um cisne negro4; ou seja, para ser científico, um método de pesquisa deve ser baseado
na aquisição de dados empíricos observáveis e provas mensuráveis, que em seguida
devem ser submetidos a testes de hipóteses voltados para provar o contrário de determinada
teoria, hipótese ou enunciado4. O Marxismo não tem nada disso e,
portanto não poderia ser confundido com uma ciência.
Um cisne negro prova que nem todos os cisnes são brancos |
Afora
isso, Popper mostrou o erro de tradução que deu origem à alegação de que o Marxismo
era uma ciência: a palavra ‘wissenshaft’
que Marx usou e que significa ‘corpo de conhecimentos’ foi traduzida como ‘ciência’,
quando a palavra alemã correta para ‘ciência’ é ‘naturwissenshaft’ ou ‘ciência da natureza’. Segundo Popper, nem a estrutura
preditiva de suas premissas nem o emprego exclusivo do físico em contrapartida com
o não físico, faz do Marxismo uma ciência5.
Os
marxistas, é claro, não gostam da classificação do marxismo como não-ciência,
claramente pelo respeito que a ciência recebe em nossa sociedade, já que se
baseia em estudos comprovados para agregar mais informação ao nosso mundo,
bem como o constante progresso tecnológico que esta proporciona; em outras
palavras, a ciência é respeitada por que funciona! Para fugir a isso, os
marxistas, ao contrário dos outros acadêmicos, baseiam sua filosofia da ciência
em Kuhn, e não em Popper, já que Kuhn6 fala da necessidade de
revoluções científicas. O progresso científico, segundo ele, não é puramente
cumulativo, há momentos em que um dado paradigma científico esgota a sua
capacidade explicativa e é superado, falsificando (muitas vezes pela base)
alguns dos conhecimentos tidos por adquiridos. Conforme Kuhn esse movimento de
avanço, esgotamento, refundação marca as épocas e, no geral constitui um
progresso. O problema que os marxistas não levam em conta nisso é que
Kuhn não esclarece em si o que é ciência ou não, uma vez que o problema da
demarcação (ou seja, da definição de ciência e pseudociência) não é seu escopo
filosófico; Kuhn defende que a ciência se desenvolve em revoluções e que quando
estas revoluções chegam criam um novo paradigma, batendo de frente com o que
ele chama de “ciência normal”, ocorrendo a o que ele denomina incomensurabilidade,
ou seja, a incapacidade da “ciência antiga” compreender o novo paradigma, mas
mesmo que isso esteja correto não inviabiliza a demarcação popperiana, ou seja,
Popper e Kuhn não são incompatíveis. Assim, quando se considera que sempre que
uma teoria ou hipótese marxista falha – como é o caso de o marxismo não prever
a reinvenção periódica do capitalismo ou de o mundo não estar marchando
inexoravelmente para o socialismo – os marxistas não consideram o marxismo, ao
menos na concepção analisada, refutado; na verdade, eles apenas adaptam a
explicação e colocam sub-explicações que Marx nunca disse, ou usam o artifício
de “você não entendeu o contexto” para explicar as refutações como
não-refutações. De fato, o marxismo não buscam tirar conclusões dos fatos, mas
sim buscam fatos que suportem sua teoria; ou seja, o marxismo não está aberto à
refutação como qualquer teoria científica, e sabendo-se que a definição de pseudociência
é uma hipótese, teoria ou corpo de conhecimento que não esteja aberta à
refutação, assim, é impossível não classificar o marxismo (e o positivismo), ou
como pseudociência, ou no mínimo como não-ciência, enquadrando-o,
provavelmente, como filosofia.
_____________________
1 – HOLDER, A.
Sexo não vende mais, ativismo
vende. E as marcas sabem disso.
In: El Coyote, 15 abr 2017. Disponível em [http://elcoyote.org/sexo-nao-vende-mais-ativismo-vende-e-as-marcas-sabem-disso/],
acesso em 3 ago 2017.
2 – Para saber mais sobre o pensamento de Marx sem ter que ler
os quatro tomos da obra, sugiro [MARX, K. Capital
(An Abridged Edition) (Oxford World Classics). Oxford: Oxford University Press,
2008.]. Na obra estão resumidos os conceitos econômicos da teoria marxista, tais
como mais valia, capital constante e capital variável, uma análise sobre o salário;
ou sobre a acumulação primitiva. Resumindo, sobre todos os aspectos do modo de produção
capitalista e, é claro, a teoria sobre a crise do capital.
3 – Ciência. In Michaelis: Dicionário Brasileiro da Língua
Portuguesa. Disponível em [ http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=ciencia],
acesso em 3 ago 2017.
3 – SINGH, S. Big
Bang. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.
4 – POPPER, K. A
lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2014.
5 – POPPER, K. Conjecturas
e refutações. São Paulo: Almedina: 2003.
6 - KUHN, T. A Estrutura das Revoluções Cientificas.
Lisboa: Guerra & Paz, 2009.
Comentários
Postar um comentário