Sabão feito de heróis
“Olhemo-nos no rosto.
Nós somos hiperbóreos1 – sabemos muito bem o quão à parte vivemos. (...)
Nós descobrimos essa felicidade; nós conhecemos o caminho; retiramos essa sabedoria
dos milhares de anos no labirinto.”2 Assim Nietzsche começa seu Anticristo
– uma obra de crítica direta ao cristianismo. Bom, apesar de estar ficando velho
confesso que não vivi o Século XIX (apesar de minha esposa, que é kardecista, acreditar
na possibilidade), ou pelo menos, se vivi, não tenho lembranças suficientes para
saber da veracidade da afirmação de Nietzsche quando o livro foi lançado, em 1888,
mas posso afirmar sobre esse começo de Século XXI: nós, homens (neste texto, sempre
que usar as palavras homem ou homens estarei me referindo a estes enquanto sexo,
não enquanto espécie Homo sapiens sapiens)
não descobrimos a felicidade, não conhecemos o caminho e estamos perdidos no labirinto,
com o agravante de que Ariadne não vai nos puxar pelo novelo, pois é uma mulher
moderna, independente e que nos considera o mal do mundo3.
Gosto de uma
metáfora usada por Johnson12, o qual afirma que nos identificamos
cada vez mais com Percival. Sir Percival, explica Johnson, era um cavaleiro da
Távola Redonda que havia sido criado por sua mãe, sem a participação do pai e
afastado do mundo masculino, mundo esse caracterizado por batalhas e duelos
(qualquer semelhança com a doutrina que vê o masculino com maus olhos não é
mera coincidência). Protegido da realidade graças ao zelo materno, Sir Percival
foi obrigado a, repentinamente, confrontar-se com o mundo dos homens,
representado pelos cavaleiros do Rei Arthur, sem qualquer
orientação de como agir senão seguindo os ingênuos conselhos de sua mãe,
conselhos esses que o fazem agir impropriamente. De acordo com Johnson,
os homens de hoje em dia, assim como o Sir Percival da lenda, estariam confusos
a respeito de sua identidade masculina, pois não temos mais uma ariadne para
nos ajudar a sair do labirinto do mundo materno para o mundo dos homens.
De fato, o homem
moderno está em crise. Já sabe não ser o brucutu4 que seus genes querem
fazer dele, mas tampouco se sente à vontade em seu novo papel onde deve assumir
emoções, dividir a tarefa de ser mãe, ajudar nas tarefas domésticas, ser politicamente
correto e adorar dança moderna. Sabe não ser mais o cavaleiro que salvará a donzela
em perigo (afinal, as donzelas agora fazem jiu-jitsu e enfrentam o dragão à unha)
e sente-se perdido, sem saber bem qual seu papel na sociedade moderna ou como deve
agir no dia-a-dia: assediar mulheres não é correto, mas se você não “chegar junto”
vão afirmar que você não tem pegada; deve fazer 50% das tarefas domésticas, mas
somente a mulher deve se aposentar mais cedo por dupla jornada; tem seu nível
de testosterona reduzido década a década5 (as hipóteses para isso vão
de mudanças na alimentação a “castração simbólica”), mas tem obrigação de
seguir “dando no couro”; deve aceitar, pois é politicamente correto, que homens
e mulheres são iguais fisicamente (em direitos e deveres acredito que sim,
devem sê-lo), que cérebros trabalham da mesma forma (muito embora a ciência demonstre
o contrário6) e que, portanto, todas as diferenças entre homens e
mulheres são construídas socialmente, que se ele não é tão sensível quando uma
mulher, não reconhece tantas cores, é mais agressivo, trabalha melhor com
imagens 3D, é melhores em matemática mas pior em linguagens e ciências exatas a
humanas, prefere brinquedos de armas a bonecas, é somente por que assim foi
ensinado, seus hormônios ou o fato de seu cérebro funcionar de uma maneira
diferente (para saber mais sobre como todas essas diferenças têm explicações biológicas
e bioquímicas, leia a referência 6), isso é somente por que a sociedade
patriarcal quer assim7... Em suma, para que a mulher possa assumir
seu papel na sociedade (algo socialmente necessário), a sociedade prega que o
homem deve suprimir tudo que lhe seja natural ou instintivo, embora mesmo
algumas feministas discordem que isto seja positivo8 e seguramente
uma das causas do crescente índice de homens com depressão, a principal causa
de mortes de homens abaixo dos 45 anos9, algo que vivenciamos
fortemente em minha cidade (Uruguaiana/RS), onde aproximadamente 15 homens já
se mataram somente em 2017, isso em uma população de pouco mais de 100 mil
pessoas (sendo que os homens somam pouco mais de 50 mil), ou seja, uma taxa
praticamente de 15 suicídios por 100 mil homens, uma taxa altíssima.
Afora tudo
isso, precisamos ser produtivos, ficar ricos ou morrer tentando, afinal, o
mercado financeiro precisa que produzamos para poder continuar funcionando, o
capitalismo é um ente que se autoalimenta do que ele mesmo produz; nas palavras
de Palahniuk/Fincher em Clube da Luta10: [somos] consumidores,
subprodutos obsessivos de um estilo de vida (...) lemos o que nos falam
para ler, pensamos o que nos falam para pensar, compramos o que nos falam que
precisamos. (...)Você não é o seu trabalho; você não é a sua correntinha, nem o
seu carro, o conteúdo da sua carteira. Você não é as suas calças (...) o que
você possui, acaba te possuindo. Ou ainda, a minha frase preferida do mesmo
filme: temos empregos que odiamos, para comprar merdas que não precisamos, com
um dinheiro que não temos, para impressionar pessoas de quem não gostamos. Somos,
pois, tal qual Jack (o personagem é chamado assim, embora nem no livro nem no
filme tenha nome), somos insones nos consolando entre outros homens castrados,
trocando nossa felicidade por sofás refinados ou mesinhas com o ying-yang, com
uma geladeira cheia de temperos mas sem carne, pois consumi-la é especismo11.
Qual a fuga
desse labirinto? Bom, não tenho uma receita pronta, mas eu me encontrei no
clube da luta. Ok, embora a primeira regra seja não falar sobre o clube da luta
e a segunda regra seja não falar sobre o clube da luta, concordo com Lisboa12
quando este afirma que só crianças não percebem que essa regra é uma isca
tentadora e feita justamente para as crianças a desobedecerem, como parte do
processo de questionar toda autoridade estabelecida. É preciso, pois, lutar
em busca da própria iluminação pessoal, matar seus familiares, seu deus, seu
professor (como disse o mestre zen Linji Yixuan: se o Buda atrapalhar sua
iluminação, mate o Buda; é interessante lembrar que, em Clube da Luta, ao final
Jack também mata Tyler, o responsável por sua iluminação ou, nas palavras de
Nietzsche, não carregue mortos nas costas13). Eu mato meu buda e
meus demônios através da prática do karatê, treinando katas até meus músculos
adormecerem, batendo minha mão contra um paralelepípedo de pedra, pois “sem
dor, sem sacrifício, não teríamos nada (...) o primeiro sabão foi feito das
cinzas dos heróis”10. Mas você não precisa necessariamente, como eu,
compreender sua dor espiritual transformando-a em dor física (algo relacionado
ao zen e a algumas outras doutrinas espirituais, inclusive algumas vertentes do
cristianismo), é preciso apenas saber que esta é sua vida, e ela se acaba
minuto a minuto, portanto não importa como você vai lutar, mas lute, até por
que, conforme nos conta Jack10, após uma noite de luta o volume do
mundo real fica mais baixo, e você consegue ouvir melhor a seus próprios
pensamentos, comece a lutar, mostre que está vivo, se você não reivindica sua
própria humanidade você se transforma em estatística, além disso, “o quanto
conhece a si mesmo se nunca entrou numa luta?”10.
Largue a TV,
esqueça a geladeira quebrada, não ligue se o que você busca não agrada àqueles
que te cercam, se não é “politicamente correto”. Entretanto, um disclaimer necessário: não confunda a
busca de seu próprio caminho e de seu “kokoro”
com totalitarismo ou fundamentalismo, não esqueça, o que está em seu kokoro é seu caminho, não o caminho dos
outros, os outros podem ter caminhos totalmente opostos ao seu, mas têm o mesmo
direito à busca da felicidade e da realização pessoal; saber-se homem, com
corpo masculino e cérebro masculino, que não aprecia balé, bacon vegetariano ou
falar sobre os sentimentos não pode ser confundido com homofobia ou sexismo,
mas sim com a descoberta e a afirmação do próprio eu.
A afirmação do
próprio eu masculino, tampouco deve ser confundida com irresponsabilidade
emocional, pois, conforme Lisboa12, dentre as diferenças entre
meninos e homens, uma das mais importantes é que meninos não assumem o
compromisso de cuidar daqueles que amam, pela simples razão de que ninguém
espera que o façam. Meninos, por definição, são cuidados por adultos. Um homem,
ao contrário, apenas se torna homem quando passa a cuidar dos outros, quando
não foge do envolvimento emocional com as pessoas, e assume a responsabilidade
de velar, de proteger e de estar ao lado daqueles que amam: sua companheira,
seus pais, seus filhos, seus amigos. Homens constroem, homens preservam o que é
bom. Eles não destroem indiscriminadamente. Preferem aprimorar o que já existe,
eliminando o que há de defeituoso com critério e respeito à vida humana. A
própria afirmação de “matar seus pais e professores”, que obviamente não se
refere ao assassinato, não tampouco significa perder o amor ou a amizade por
aqueles que já passaram por sua vida, mas sim desprender-se de conceitos que
não são mais úteis a você e que por eles foram ensinados. Ser adulto é formar
sua própria ideia de mundo, com partes do que foi aprendido por todo o caminho,
mas segundo a própria visão pessoal, lavando com sabão o que não é mais útil e
sem o temor à dor, pois o sabão é feito de heróis.
Seja feliz, siga seu caminho, e
não esqueça, se encontrar o Buda pelo caminho, mate-o!
___________________________
1 - Os Gregos acreditavam que no extremo Norte da Terra vivia
um povo que gozava de felicidade eterna, os hiperbóreos, que nunca guerreavam, adoeciam
ou envelheciam. Sem a ajuda dos Deuses, seu território era inalcançável.
2- NIETZSCHE, F. O Anticristo.
São Paulo: Centauro, 2004.
3 – Na mitologia grega, Ariadne é a princesa de Creta, filha
do rei Minos e da rainha Parsífae, que ajudou Teseu quando este foi a Creta como
sacrifício ao Minotauro, que habitava o labirinto construído por Dédalo. Para ajudar
Teseu em sua luta, Ariadne deu-lhe uma espada e um fio de lã para que ele pudesse
achar o caminho de volta, pois ela ficaria segurando uma das pontas na saída do
labirinto, assegurando assim tanto a vitória de Teseu sobre o Minotauro (o qual
matou com a espada) quanto seu retorno do labirinto do qual ninguém achava a saída,
tão bem projetado que fora.
4 - Brucutu foi o nome que recebeu a personagem Alley Oop no
Brasil. Criado por , criada por Vincent T. Hamlin e publicado nos USA pela primeira
vez em 1932, o personagem é um homem das cavernas e, por extensão, ficou associado
no vocabulário popular a pessoa ríspida, grosseira, bruta, rude...
5 – LEVINE,
H.; JØRGENSEN, N.; MARTINO-ANDRADE, A.;
DAN WEKSLER-DERRI, J.M.; MINDLIS,
I.; PINOTTI, R.; SWAN, S.H. Temporal trends in sperm count: a systematic review
and meta-regression analysis. In: Oxford
Academic, 25 jul 2017. Disponível em
[https://academic.oup.com/humupd/article-lookup/doi/10.1093/humupd/dmx022];
acesso em 08 ago 2017.
6 – COELHO, M. Diferenças genéticas, neurobiológicas e
físicas entre homens e mulheres e suas explicações naturais. In: Universo Racionalista, 6 ago 2017.
Disponível em [https://universoracionalista.org/diferencas-geneticas-neurobiologicas-e-fisicas-entre-homens-e-mulheres-e-suas-explicacoes-naturais/];
acesso em 08 ago 2017. Obs: Embora
este não seja um artigo com revisão por pares, foi postado por citar (e ter
link para as citações) 53 artigos que corroboram as conclusões do texto, sendo
que estes todos são artigos publicados com revisão por pares.
7 – FAUSTO-STERLING,
A. Sexing the Body: gender, politics
and the construction of sexuality. New York: Basic Books, 2000.
8 – BUSCATO, M. Camille Paglia: "O feminismo não é
honesto com as mulheres". In: Revista
Época, 2 mar 2012. Disponível em [http://revistaepoca.globo.com/vida/noticia/2012/03/camille-paglia-o-feminismo-nao-e-honesto-com-mulheres.html];
acesso em 08 ago 2017.
9 – HEMMINGS,
C. Male suicide: It's time to face the stark truth about a growing crisis. In:
Independent, 10 set 2016. Disponível
em [http://www.independent.co.uk/voices/world-suicide-prevention-day-men-emotions-childhood-biggest-killer-in-uk-under-45-a7235766.html];
acesso em 08 ago 2017.
10 – CLUBE da Luta.
Direção David Fincher, Produção: Art Linson, Ceán Chaffin, Ross
Grayson Bell. Los Angeles: 20th Century Fox, 1999. Baseado no romance
homônimo de Chuck Palahniuk.
11 – ESPECISMO. In: Wikipedia: a enciclopédia livre.
Disponível em [https://pt.wikipedia.org/wiki/Especismo]; acesso em 08 ago 2017.
12 – LISBOA, V. O Clube da Luta é um filme sobre homens de
verdade. In: Ano Zero, s/d. Disponível em [http://ano-zero.com/clube-da-luta/],
acesso em 08 ago 2017.
12 – JOHNSON, R. He:
A Chave Do Entendimento Da Psicologia Masculina. São Paulo, Mercuryo, 1995.
13 – NIETZSCHE, F. Assim
falava Zaratustra. São Paulo: Editora Escala, 2008.
Comentários
Postar um comentário