Daniel San e a sincronicidade

Naquele dia ela chegou atrasada, emoldurada por uma neblina triste, com aparência de fog londrino, linda em sua aura de preocupação com a prova de matemática, enquanto em algum lugar Lulu Santos cantava Apenas Mais Uma de Amor, o que me pareceu estranhamento apropriado, lembrei – mas logo afastei da cabeça – da teoria da sincronicidade de Jung.

“Estudei a tarde inteira”, disse-me com um sorrisinho lindo nos lábios carnudos, que destacou suas covinhas no rosto, apesar da eterna tristeza de seus olhos negros.

“Sei”, disse-lhe eu, “mas acho que não vai ser difícil”.

Começamos uma conversa amena e fomos comprar uma coca, que dividimos usando o mesmo canudo.

Lembrei-me que os colegas logo chegariam e não ficaríamos mais sozinhos, e convidei-a para uma volta pela quadra da escola.

“Somente você”, disse-me ela, “para me convencer a caminhar nesse frio”.

“Preciso do conselho de uma amiga”, disse-lhe.

“Sou toda ouvidos”.

“É que...” e puxei o fôlego, “é que... estou a fim de alguém... alguém muito especial...”

“Ah, seu malandro...” respodeu-me ela, novamente com seu sorriso lindo, mas um pouco tenso, “de quem? Quem é a sortuda?”

“Tu a conheces... bem. O único problema é que tenho receio de dizer para ela, aprecio demais a amizade dela e tenho medo de que ela se afaste de mim, neste caso preferia que ela nunca ficasse sabendo.”

“Ah, vai, fala pra ela, se quiser eu te ajudo. Só se ela for uma débil mental para se ofender. Se tu quiseres eu vou junto e te ajudo.”

“Então”, lasquei, “me ajuda agora...”

“Como assim?”

“Diz pra ti mesmo não ficar brava comigo.”

Ela enrubesceu e baixou os olhos, começando a comentar rapidamente sobre a chuva, a prova, nossa colega inconveniente, o fato da coca-cola estar gelada, até ficar sem fôlego; parecia estar intimamente pensando, decidindo que rumo tomar.

Por fim, não pude mais me conter.

“Seja clara, não rola, né?”

Ela novamente sorriu e meu coração deu um salto.

Beijou-me o rosto e encostou a cabeça em meu ombro.

“Gosto muito de você também”, disse-me, “mas não posso fazer isso com meu noivo”.

Caminhamos juntos, em silêncio, pela neblina em direção ao colégio, pois já estava na hora da aula.

Quando chegamos à porta ela arrematou:

“Mas é muito bom saber que alguém especial gosta da gente”.

Seguimos para a prova e a adrenalina da declaração foi muito bem vinda; fiquei com o cérebro ligadíssimo, quase como na parte boa da fase maníaca e lembrei de toda a matéria, até mesmo a questão que não lembrava por englobar matéria dada em um dia em que estava gripado, mas achava que tinha chutado pro lado certo, grande possibilidade de ter gabaritado a sabatina, mesmo tendo sido o primeiro a entregá-la e sair.

Esperei o ônibus com a certeza de que ela não pegaria o mesmo o que, de certa forma, era bom; não estava preparado para encará-la naquele momento em que um misto de tristeza e euforia me invadia. Chegaram duas colegas, a quem enchi com piadas politicamente incorretas sobre professoras bonitas e colegas inconvenientes, para deleite de ambas, e fui para casa me sentindo mais sozinho do que me sentia em muito tempo.

Comprei uma cerveja, pois naqueles loucos anos 80 menor também bebia, e assisti “Fome Animal” na TV.

Tomei um banho demorado e, por volta das 2h da manhã dormi um sono cheio de sonhos despedaçados.

No dia seguinte, lembrei-me novamente de Carl Gustav Jung ao acordar: Eu gosto tanto de você / Que até prefiro esconder / Deixo assim ficar / Subentendido / Como uma idéia que existe na cabeça / E não tem a menor obrigação de acontecer, tocava o rádio na cozinha.

Confesso que a melodia aumentou minha solidão.

À tarde fui ao cinema e assisti Karatê Kid, e pensei sobre o fato de Daniel San descobrir, no fim, que podia vencer apesar de todas as chances em contrário; novamente lembrei de Jung.

À noite olhei as estrelas meditando, enquanto racinalizava sobre estar contente comigo mesmo.

Não tinha atingido meu objetivo, não tinha uma namorada mas... era esse mesmo meu objetivo? Ou será que meu objetivo principal era conseguir me declarar, quebrar o bloqueio da timidez, me sentir vivo? Pensei... pensei... e concluí pela segunda opção, já que estava me sentindo muito mais vivo do que melancólico.

“O importante”, conclui, “é que senti que POSSO, que posso superar a timidez, que posso me declarar a uma mulher que me interessa, que tenho ‘culhão’ (com o perdão do termo chulo) para ‘enfrentar’ uma mulher bonita sem gaguejar, sem me atrapalhar com as palavras, sem tremer, e isso era algo que precisava provar para mim mesmo há muito tempo”.

Finalizando, lembrei dos trabalhos de Campbell sobre a influência dos símbolos na psiquê, e assim, fui até a farmácia mais próxima e comprei um pacote de preservativos que pus na mochila: “não sou um ‘macho alfa’ certamente”, pensei com um sorriso, “mas posso erguer o queixo e me encarar o suficiente, quem sabe, para interessar alguém? E se não rolar? Bem, paciência, o importante é que Daniel San não desiste da luta e, no final do filme, até fica com a mocinha!

Mais tarde, dormi tranqüilo e sonhei com covinhas e uma boca carnuda que me beijava.

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