Pesadelo

Telmo sente-se desconfortável no divã, apesar de todo o esforço do jovem médico para deixá-lo à vontade.

— Se você preferir – diz-lhe o psiquiatra – pode sentar na cadeira; o importante é que você se sinta confortável.

— Não, aqui mesmo está bom – responde Telmo, embora sentisse que o corpo doía, como se os sonhos repetitivos que o levaram à consulta estivessem vagarosamente se apossando de seu corpo.

— Mas você me falava de sonhos...

Antes de responder, Telmo passa os olhos castanhos pelo ambiente decorado com bom gosto, detendo o olhar sobre a mesa onde observa, ao lado do busto de Freud, que o médico esquecera de mudar o mês do calendário, o qual ainda está em junho de 1973.

— Sonhos não, doutor – diz, por fim –, pesadelos!

— Pesadelos... Sei... – diz o médico, anotando algo em um caderninho, o que deixa Telmo ainda mais desconfortável – E sobre o que são esses pesadelos?

“O que será que esse sujeito tanto anota?”, pensa o paciente, sempre sentindo o desconforto físico, enquanto as imagens lhe vêm à mente, de maneira tão vívida como se o estivesse vivendo.

***

Telmo sacode a cabeça, tentando tirar dos olhos a água suja que lhe jogaram, enquanto abençoa o fato de suas pernas estarem tão dormentes que mal sentem o pau-de-arara.

— É tão fácil você terminar com esse sofrimento – diz-lhe o policial jovem, com a camisa de mangas dobradas acima do cotovelo – basta que nos diga um nome, um local, qualquer coisa...

Telmo cerra ainda mais a boca, sentindo o gosto do sangue saído dos cortes nos locais onde as bofetadas cortaram a mucosa bucal contra os dentes, enquanto as costelas quebradas doem quase tanto quanto o ânus e a glande queimados pelos fios elétricos horas (ou dias? ou semanas?) antes.

“Eles só querem que fale qualquer coisa”, pensa novamente, “para que comece a falar, e aí nada mais impede que eles tirem a informação que quiserem”.

O policial negro, que estava em um ponto morto de sua visão, apaga um cigarro em sua bochecha, fazendo com que grite não tanto de dor, mas de torturada surpresa.

***

— Senhor! Senhor! – diz-lhe o médico com os olhos preocupados por trás das lentes do óculos, enquanto o sacudia timidamente com uma mão – O senhor se sente bem?

Telmo abre os olhos sobressaltado; senta-se no divã e esconde o rosto nas mãos, por vergonha e desespero.

— Calma, calma meu amigo – diz-lhe o médico, com voz serena, quando vê que o paciente começa a chorar – deixe que saia, relaxe.

— É que são mais do que sonhos, doutor – diz, após um soluço doído, sentindo-se ridículo enquanto tenta se recompor e parar de chorar.

— Sim, sim... O senhor já disse, são pesadelos – diz o médico sorrindo, enquanto consulta suas anotações.

— Não, doutor, são mais do que pesadelos.

— Como assim? – questiona, colocando o dedo sob o queixo, de uma forma que lembrava vagamente O Pensador, de Rodin.

— Doutor – diz-lhe Telmo, com os olhos ensandecidos – eu estou tendo esses sonhos a todo o momento, acordado, agora mesmo acabei de ter um!

— Sei – diz-lhe o médico, novamente anotando algo em seu bloquinho – alucinações... O senhor as tem há muito tempo?

Telmo tenta pensar em quanto tempo faz que tem as ditas alucinações, mas estranhamente o tempo parece não fazer muito sentido para ele.

***

— A mariquinha não agüenta uma queimadurazinha de cigarro, doutor! – diz o policial negro ao homem de terno branco que até então permanecera impassível.

— Tu é um merda mesmo, ein subversivo! Todo comuna é uma bosta de gente, mas tu te superou! – diz o homem, com a face que Telmo tanto teme encontrar, enquanto, com a dor novamente voltando às pernas apertadas pelos braços no pau-de-arara, sentindo em seu íntimo que tudo pelo que passou até agora foi somente para amaciá-lo, o homem que tinha à sua frente, o conhecido e famigerado delegado Sérgio Paranhos Flery, era o indicativo claro de que sua situação piorava.

***

Novamente Telmo senta-se sobressaltado no divã, sob a observação atenta do médico.

— Doutor, eu estou com medo!

— O senhor teve nova alucinação? Não fique com medo, agora o senhor está bem!

— Não doutor! Eu não estou com medo do conteúdo das alucinações (embora quando esteja tendo-as sinta muito medo), mas sim de estar louco! – novas lágrimas brotam-lhe dos olhos.

— Mas afinal, o que exatamente o senhor vê nessas alucinações?

— Elas sempre têm o mesmo teor; eu estou em subterrâneo de um prédio do DOI-CODI, às vezes em uma cela, geralmente em um pau-de-arara, sofrendo torturas. Agora quem apareceu foi o delegado Fleury...

O médico junta as mãos abaixo do queixo, como se estivesse em oração, enquanto faz um muxoxo e leva quase um minuto pensando antes de readirgüir:

— O senhor sabe que a profissão que exerço é quase como um sacerdócio?

— Como assim?

— Bem, é verdade que em geral nos afastamos de Deus (ou pelo menos dessa versão de Deus que o vulgo venera), que não temos sacramentos ou que não oramos aqui, neste consultório, mas a função que exerço é quase como a de um padre em um confessionário; até diria mais: os sacerdotes que escutavam os fiéis e lhes redimiam a culpa são, de certa forma, precursores do trabalho que realizamos!

— Entendo... – diz Telmo, sem entender nada.

— Bem, e assim como no sacerdócio, boa parte do porquê desta técnica médica funcionar está na confiança mútua entre o analista e o analisado.

— O senhor acha que estou lhe ocultando algo? – questiona Telmo, após um breve momento.

— Não, apenas quero afirmar-lhe que o que for discutido nesta sala morrerá nesta sala, o senhor não precisa temer quaisquer represálias sociais ou legais pelo que me relatar de sua vida.

— Sim.

— O senhor não precisa temer expor o que pensa.

— Está bem, eu já entendi.

— Entendeu mesmo? Então me responde uma pergunta.

— Claro, doutor!

***

A dor torna-se insuportável quando um novo chute o atinge nos rins, ele sente o sangue saindo-lhe da boca.

— Por favor – balbucia entre uma golfada do líquido espesso e vermelho – eu não sei nada de terrorismo ou de subversão, sou só um estudante...

— Ah! – diz-lhe Fleury, aproximando a face do único olho aberto de Telmo – então agora o comuna decidiu falar, não é? Vamos! Quero saber o nome do grupo que tu integra, qual o nome pra bosta da célula comuna que vocês puseram agora? MR8? Polop? ALN? VAR-Palmares? PCBR? Fala, caralho! – diz-lhe o delegado, apertando com força o pescoço.

***

— C...Como? – Questiona Telmo, voltando do devaneio.

— Eu perguntei – responde o médico com delicadeza – se o senhor simpatiza com o governo militar...

Telmo sente uma certa apreensão ante a pergunta.

— Que idade você tem? – pergunta o psiquiatra.

— Vinte e cinco.

— Temos quase a mesma idade. Sabe, faz pouco que saí da faculdade...

Telmo começa vagarosamente a seguir a linha de raciocínio que o médico lhe expõe.

— Onde o senhor estudou? – questiona ao doutor.

— UFRJ.

— O senhor estudou no Rio? E o que faz aqui em São Paulo?

— Bem... pode-se dizer que a situação não está muito boa por lá para um estudante que tenha saído na veja em 1968...

— Em um congresso?

O médico limita-se a sorrir.

Telmo recorda vagamente o rosto do outro no congresso da UNE que acabou com todos presos em Ibiúna e sorri.

— Sim, eu acho que lembro de um rapaz bem mais jovem naquela ocasião...

— Pois então! Você sabe como a situação não está fácil para nós que não simpatizamos com o pessoal de verde...

— Ah, isso lá é verdade.

— Você deve estar sob muita, muita pressão!

— Bom, isso também é verdade.

— Muitos amigos desaparecidos, e sobretudo muito medo de que ‘os home’ saibam o que você anda fazendo ou pensando...

— Bom... Não gostaria de comentar sobre isso...

— Eu compreendo, também não gosto de ‘abrir’ para quem não é da mesma organização que eu, mas o importante é que isso explica muita coisa.

— Como assim?

— Bom, há um termo que um psiquiatra americano moldou para o que você está passando, calcado no termo usado na fadiga de estruturas de engenharia; o termo é stress; você já conhece o conceito?

— Não, para falar a verdade nunca ouvi.

— Bem, grosso modo é o desgaste da estrutura emocional por uma constante pressão; é um termo que não é comum mas que, se a sociedade continuar como está vai ser cada vez mais ouvido – profetizou o analista.

— De forma – prossegue – que as alucinações que você está tendo, provavelmente, são uma forma de sua mente lidar com os medos que o senhor está enfrentando, já que o senhor está com uma pressão psicológica equivalente à de uma guerra, provavelmente esteja com uma espécie de trauma de guerra, não me parece que seja esquizofrenia ou algo do gênero, já que o senhor consegue separar o que é realidade do que é alucinação...

— O senhor está dizendo, então, doutor, que eu não estou louco?

— Bem, louco não é um termo que goste de usar e ainda é cedo para um diagnóstico definitivo mas, se o que penso for verdade, o senhor não é mais louco do que eu, e certamente é muito menos louco do que o tempo em que vivemos...

Telmo sorri, pela primeira vez em muito tempo, sentindo-se etéreo, bem e, ao contrário dos últimos dias, sem as dores que lhe atormentam o corpo, embora o rosto do médico esteja cada vez mais desfocado.

***

— Comuna é mesmo tudo frouxo! – diz o policial negro quando o médico de plantão dá o diagnóstico.

— É aquele negócio – diz o policial jovem, tentando parecer durão – se a gente aperta merda ela se desfaz na mão...

— Ah... – diz Flery – Nem liguem, não tem importância. Eu acho que ele não devia pertencer a nenhum grupo importante, deve ser mais um ‘esquerda festiva’ que estava no lugar errado, na hora errada.

— E o que a gente faz com o corpo? – pergunta o policial mais novo.

— Não te preocupa, o Fernandes – responde o delegado, apontando com o queixo para o policial negro – sabe o que fazer.

— Vamos, Souza – diz o policial negro ao policial jovem – esse rapaz tem um bilhete só de ida para o cemitério de Perus...

Sérgio Paranhos Flery observa os outros dois levarem o corpo sem vida do homem que torturara, limpando as mãos em um pano úmido, enquanto medita, sem compreender, sobre o estranho sorriso que o homem estampou no rosto em seus momentos finais.

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