A hostilidade do macaco nu

Na abertura da Semana Acadêmica das Licenciaturas da Unipampa de Uruguaiana tivemos um excelente debate sobre “as dores e as delícias de ser professor”. O tema, interessantíssimo para quem, como eu, está se preparando para, um dia, assumir uma classe, foi bem trabalhado por quem entende do assunto: professores.
Mas dentre tudo, o que mais me chamou a atenção foi um questionamento de um dos alunos sobre os recentes incidentes envolvendo violência em sala de aula.
Citaram-se desde casos de professores agredidos e bulling, até o caso do atirador da escola do Rio de Janeiro, tristemente famoso nacionalmente.
O debate surgido do tema proposto pelo discente fez-me pensar, e pensar faz-me querer escrever sobre o tema.
Vamos nos olhar de frente: nós somos macacos violentos.
É, leitor, você entendeu certo: macacos. Se você ainda não leu “O Macaco Nu”, de Desmond Morris, faça-o o mais breve possível e você vai entender do que falo.
E também sim, não só macacos, mas macacos violentos.
“Espera aí”, pensa o leitor pego de surpresa, “mas eu sou da paz”.
Sim, meu caro, minha cara, todos – ou ao menos a maioria de nós – somos ‘da paz’; todos – ou novamente o maior percentual – abomina a violência ou, pelo menos, assim pensamos que pensamos.
Mas, com o perdão da repetição do termo, pensemos um pouco; será que realmente somos ‘da paz’, ou será que somente desviamos – redirecionamos, como diria Freud – nossa própria violência, de forma a permitir que nossa própria bestialidade possa passar pelo filtro de nosso id?
É verdade, a maioria de nós não pega um osso e sai batendo na cabeça dos outros macacos nus, como no início de 2001-Uma Odisséia no Espaço (onde, inclusive, os macacos ainda não eram nus), ou, para ser mais atual, não entramos em uma escola cheia de adolescentes atirando.
É verdade, também, que a maioria de meus leitores não vai sair por aí com um 38 exigindo que um trabalhador lhe entregue seus caraminguados.
Tampouco acho provável que um de nós, Homo sapiens portadores do gene sexual XY, saiamos e estupremos a primeira fêmea voluptuosa que atice nossa libido (novamente, pelo menos a maioria de nós).
“Mas então”, pensa novamente o leitor, “aí está, não sou violento”.
Ocorre, meus caros, que vocês, assim como eu, estão olhando a violência somente em sua face de revolta do oprimido.
Brecht, certa vez, disse que “do rio que tudo arrasa dizemos violento, mas não se dizem violentas das margens que o oprimem”.
É verdade: não saímos atirando em crianças; mas quando crianças, não nos furtamos ao bulling (e muitos de nós nem mesmo depois de adultos), assim como muitas vezes preferimos tratar de um cão de rua a dar-lhe uma refeição decente a dá-la a outro macaco nu carente; para muitos, é mais chocante um Canis canis abandonado do que um Homo sapiens revirando o lixo...
É verdade: não assaltamos ou roubamos (acredito que meus leitores assim procedam); mas não nos importamos que outros não tenham oportunidades na vida e que alguns não tenham sequer uma refeição decente e, muitas vezes, sejam forçados à marginalidade do crime, do tráfico, do descaminho. Também não consideramos roubo quando o dinheiro fácil vem para nosso bolso, ou quando assaltamos ao erário ou subornamos um funcionário público.
Também é verdade que não estupramos as fêmeas (ao menos não a maioria de nós), mas não nos furtamos a discriminar outras pessoas por seu sexo ou sua opção sexual, de sermos canalhas ou cafajestes com o sexo oposto.
Somos, pois, perpetradores de violência: da violência da opressão, da submissão, do descaso, do preconceito.
Assombramo-nos com a violência brutal e ruidosa do assaltante, do assassino, do estuprador, mas sentimo-nos tranqüilos em nossos ninhos de conforto com nossa própria violência silenciosa, que também faz sofrer, que também alija, que também rouba, que também violenta, que também mata.
E então, caríssimo leitor, qual a solução?
Bom, tenho más notícias. Penso que não há soluções a curto prazo e sem grandes custos, embora sejam necessárias soluções paliativas imediatas.
Considero que é necessária uma transformação social a médio e longo prazo, grandes investimentos em educação – básica, média, universitária e técnica –, em infraestrutura, em distribuição de renda, em maior dureza a criminosos de colarinho branco – que geralmente ficam impunes, embora nos roubem e prejudiquem muito mais do que o ladrão ‘pé-de-chinelo’ –, é preciso que se faça ecologia combatendo a grande empresa que polui, que desmata, que envenena cursos d’água, não somente deixando de usar sacolas plásticas que tem um efeito mínimo sobre o impacto ecológico, tendo um efeito muito maior sobre a tranquilização de nossa consciência (se está tudo assim não é culpa minha...)
Mas o que podemos fazer de imediato para que toda esta transformação possa vir a acontecer no futuro, é não perdermos nossas capacidades de indignação e de busca de autoaprimoramento.
Indignação com tudo o que está aí, não somente com aquilo que nos prejudica pessoalmente, não apenas com a violência que nos causa pânico por mexer com nossa própria tanatofobia, mas com todos os tipos de violência.
É necessário que esta indignação se estenda a nossas ações diárias e se transforme no autoaprimoramento. Que não só cobremos honestidade de nossos políticos ou de nossos funcionários públicos, mas que também, quando tivermos oportunidade, não corrompamos estes mesmos políticos e funcionários e, quando for a nossa vez de ocupar um cargo, não nos deixemos corromper.
É preciso que comecemos a ver a vida como um direito de todos, e que percebamos que sem uma mínima dignidade, a vida pode ser pior do que a morte, uma verdadeira morte-em-vida.
É, pois, urgente que nos tornemos novos homens e mulheres, sabedores de nossa responsabilidade social e militantes pela causa da mudança consciente.
Não nos iludamos, soluções não cairão do céu – o máximo que cai do céu, dizia meu avô, é raio-guaxo –; sem nossa efetiva participação, somente podemos esperar que a espiral de violência ruidosa cresça em nível equivalente ao do crescimento da violência silenciosa, até que o esfacelamento iminente de nossa estrutura social acabe por tornar a violência que vivemos uma realidade desejável frente à nova realidade que se descortinará neste remoto ponto azul habitado por macacos nus violentos. 

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