O Capelão do Diabo e as moscas sem asas

No último dia 19 desenvolvemos um trabalho sobre darwinismo na faculdade e pude constatar o quanto a Seleção Natural, postulada por Darwin-Wallace ainda agita os ânimos. Não vejo uma mesma exacerbação de posições, por exemplo, quanto à Teoria da Relatividade de Einstein. Se pensarmos um pouco, logo nos damos conta do óbvio: a Teoria da Evolução é tão controversa por tratar daquilo que mais nos é caro: a vida.
Mas essa polêmica não é nova. O próprio Darwin tinha pesadelos ao pensar sobre o quanto sua teoria afetava a visão religiosa de mundo, a ponto de ter afirmado que, por sua teoria, poderia ser considerado o Capelão do Diabo, no sentindo que sua proposição ‘matava’ o conceito de deus.
Ainda assim, às vezes ainda me surpreendo o quão pouco as pessoas compreendem a Teoria da Evolução das Espécies e o quanto, sem compreendê-la, se posicionam contra ou a favor.
Buscando colaborar na evolução da compreensão da Evolução (com o perdão do trocadilho) e, assim, subir o nível da discussão, exponho abaixo um resumo do trabalho que apresentamos.
É bom lembrar, porém, que isto é só um resumo superficial. Para quem quiser saber mais, é bom estudar. Uma boa dica para começar é o próprio livro de Darwin, que pode ser comprado por menos de R$ 20 em edição de bolso com texto integral.
Para começo de conversa, pense em um nazista clássico, aquele loiro alto de uniforme, ombros largos e um queixo duro. Em seguida, pense em um pigmeu, um bosquímano do Kalahari com seu um metro e pouco, e sua pele escura cobrindo uns parcos 40 kg.
Pensou? Então responda rápido: qual dos dois é fisicamente mais forte?
Ora, até aqui falamos do óbvio. Logicamente o homem com uniforme da Wehrmarcht é incomensuravelmente mais forte. Então, pela mesma lógica, o ariano, pela Teoria da Evolução é, também, o mais evoluído, certo?
Errado! E esse é um dos pontos mais incompreendidos: a teoria não postula a sobrevivência do mais forte, mas sim do mais adaptado.
A adaptação do homem loiro surgiu quando seus antepassados viviam em uma Europa ainda era coberta por florestas e animais selvagens e, naquele clima e habitat, ele seria indubitavelmente mais adaptado que o bosquímano.
Mas experimente largar o mesmo ser de olhos azuis no Kalahari...
Ele desenvolveria câncer de pele por falta de melanina, teria dificuldade de enxergar pelo brilho do sol em seus olhos claros e consumiria muito mais água e alimento do que a natureza poderia lhe fornecer; ou seja, estaria totalmente inadaptado para o ambiente, enquanto o pigmeu está literalmente ‘em casa’, com um corpo plenamente adaptado a tirar o máximo do habitat.
Para melhor compreensão, exponho um exemplo que li quando guri.
Imagine uma comunidade de moscas que vivem ‘felizes’ em um prado onde têm alimento e um ambiente para o qual estão adaptadas. Esses dípteros só têm um inimigo terrível: o passarinho, que sempre que pode as caça para alimentar-se.
Agora suponha que, por uma mutação no DNA, algumas dessas moscas nasçam, às vezes, sem asas. Quais destas moscas seriam mais facilmente caçadas pelo passarinho? Obviamente aquelas que não podem voar. Estas, então, não conseguem chegar à idade de reproduzir-se e passar aos descendentes seus genes.
Mas imagine, agora, que o prado fica à beira de uma praia e que nesta praia vente muito. As moscas e os passarinhos que experimentem se aventurar a voar na praia, rapidamente são pegas pelo vento e jogadas ao mar. As moscas sem asas, contudo, caminham do prado para a areia sem ser atingida pelo vento, que passa acima de suas cabeças e passam a levar uma nova vida na praia, longe de suas irmãs e de seus predadores.
Se dermos o tempo suficiente, uma nova comunidade de moscas surgirá na praia e, com o tempo, sua especiação aumentará a ponto de não mais conseguir cruzar com as moscas aladas.
Isso é a seleção natural; a sobrevivência do fenótipo mais adaptado ao habitat, não do mais forte ou sofisticado (a mosca alada, de certa maneira, pode ser considerada mais ‘sofisticada’, uma vez que voa).
Essa foi a ‘sacada’ de gênio de Darwin, uma idéia simples que mudou a forma como vemos o mundo.
Mas como ele chegou a ela?
Darwin era um naturalista e, como tal, empreendeu uma viagem pelo mundo a bordo do navio HMS Beagle, tendo coletado milhares de espécies animais nos lugares por onde passou. Alguns anos depois, já em casa, a análise destes animais o fez constatar um fato surpreendente: as espécies mudam conforme o ambiente em que vivem. O mais famoso exemplo disto são os tentilhões, espécie de pássaro que Darwin recolheu nas Galápagos e nos quais constatou que, conforme a ilha e o alimento disponível nela, mudava a forma do bico; forte nas ilhas onde era necessário quebrar nozes, fino e pontiagudo quando precisava comer insetos, etc.
Darwin juntou esta constatação aos estudos de fósseis (os quais provavam que existiram espécies diferentes das atuais que se extinguiram, além de indicarem que tais espécies tinham semelhanças com espécies atuais), com embriologia e anatomia comparadas e, sobretudo, com a teoria de Malthus sobre a quantidade de seres que a natureza produz versus o alimento disponível. As conclusões a que chegou, podem ser sintetizadas nas seguintes leis, constantes em seu livro:
1. SE há organismos que se reproduzem e...
2. SE os descendentes herdam as características de seus progenitores e...
3. SE há variação nas características e...
4. SE o ambiente não suporta todos os membros de uma população em crescimento,
5. ENTÃO aqueles membros da população com características menos adaptativas (de acordo com o ambiente) morrerão e...
6. ENTÃO aqueles membros com características mais adaptativas (de acordo com o ambiente) prosperarão.
O resultado é a evolução das espécies.
No Origem e Evolução das Espécies Darwin não tratou da ascendência do homem, deixando tal para outro livro, “A descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo”, publicado em 1871, no qual postula que as mesmas ‘leis’ valem para o homem, ou seja, evoluímos a partir de animais e não passamos de uma espécie que teve no desenvolvimento do cérebro uma adaptação ao ambiente, da mesma forma que o são as garras no leão ou as pernas compridas do cavalo.
Com essa idéia simples, porém ousada, o ‘Capelão do Diabo’ trouxe-nos muito mais do que a única explicação plausível para a origem das espécies, trouxe toda uma revolução científica (a biologia atual somente faz sentido com a Teoria da Evolução, além de importantes contribuições a ramos como a medicina, a antropologia...), filosófica (fortalecimento do ateísmo, enfraquecimento do antropocentrismo) e social (se a natureza não é estática, porque a sociedade deve sê-lo?), ou, como bem define Dawkins, a idéia de Darwin é boa demais para ser aplicada somente à biologia.

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